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Pedro Antunes

Artesanal, 'McCartney III' é o disco mais Paul e menos McCartney em anos

Paul McCartney lança o álbum "McCartney" - Mary McCartney / Divulgação
Paul McCartney lança o álbum 'McCartney' Imagem: Mary McCartney / Divulgação

Colunista do UOL

18/12/2020 00h00

Sem tempo?

  • Durante a pandemia, Paul McCarney se isolou em uma fazenda no sudeste da Inglaterra
  • A partir de um rascunho de música criado em 1990, Paul deu início ao novo disco de músicas inéditas
  • O álbum, 'McCartney III', foi lançado hoje, 18, e faz uma referência aos discos de Paul de 1970 e 1980
  • Considerá-los uma trilogia desperdiça toda a individualidade de cada um dos discos
  • 'McCartney III' soa como um disco artesanal, de carpintaria, mesmo
  • Aliás, o próprio Paul gravou todos os instrumentos e produziu 'McCartney III', assim como o fez nos dois outros discos que levam o sobrenome dele

Diz a história que Paul McCartney tinha 16 anos quando escreveu "When I'm Sixty-Four", música só gravada pelos Beatles em 1966 e lançada no ano seguinte, no álbum "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".

Na música, um jovem rapaz dizia a quem amava como imaginava a velhice de ambos juntos. Paul falava sobre perder os cabelos, sobre a proximidade com os netos, retratava uma vida simples.

Corta a cena.

Paul McCartney surge na sua frente aos 78 anos. Mantém uma cabeleira vasta, embora agora grisalha. E tem os netos por perto, conforme a previsão feita pela versão dele moleque.

Diante da pandemia do coronavírus, isolou-se em uma fazenda, em East Sussex, próxima do litoral sudeste da Inglaterra.

Pegou um rascunho de música que tinha consigo há pelo menos trinta anos e passou a escrever. Compôs e gravou sozinho. De repente, tinha diante de si, "McCartney III", um álbum lançado hoje (18) que encerra, segundo dizem, uma trilogia iniciada em 1970.

Trilogia?

Pois é, "McCartney III" é tratado como uma terceira parte, uma continuação de "McCartney" (1970) e "McCartney II" (1980). Curiosamente, esses dois álbuns são marcantes para a carreira de Paul, por tratarem, cada um na sua década, de rompimentos (o fim dos Beatles no primeiro, a descontinuidade do Wings no segundo).

Conceitualmente, são momentos de solitude, de um Paul se vendo sem companheiros de banda em um estúdio.

Faz sentido conectar "McCartney III" à sensação desconexão dos outros dois álbuns-irmãos, claro, mas não se trata de uma continuidade ao que foi mostrado nos dois outros álbuns.

Portanto, esse não é o "O Retorno de Jedi" de Paul McCartney. Não teremos ewoks pelo caminho. Também não é "O Retorno do Rei", da trilogia de O Senhor dos Anéis, muito menos um "Matrix Revolutions" (ainda bem!).

Trilogias, quase via de regra, são uma grande bobagem criada por Hollywood para extrair três vezes mais dólares da carteira do fã com uma mesma grande ideia. Quantas das trilogias que você assistiu, aliás, que pareciam terem sido esticaaaaaadas para dar conta de um terceiro filme? (Se você conseguiu assistir aos três filmes de O Hobbit, sabe do que estou falando).

Portanto, associar "McCartney III" a uma trilogia é um pecado, embora seja um movimento natural. Desmerece, contudo, não só o terceiro, este ótimo disco lançado em 2020, como também os antecessores, de 1970 e 1980. Cada um deles, afinal, marcou uma época, uma revolução particular de Paul McCartney, não um disco derivado de outro.

De maneiras distintas, esses álbuns definem períodos nos quais Paul McCartney, o ex-Beatle, se sentia mais só. Mais ele mesmo, musicalmente falando.

Um disco 'mais Paul' e 'menos McCartney'

Nas fichas técnicas dos discos dos Beatles, as composições de John Lennon e Paul McCartney eram assinadas com os sobrenomes deles, Lennon/McCartney (no início da banda, a ordem foi invertida, mas isso durou pouquíssimo, apesar dos protestos de Paul). Portanto, o eu-compositor de Paul nos Beatles era personalizado na figura do McCartney.

Ao se desvincular da banda, após uma década, em 1970, decidiu nomear o álbum completamente solo como "McCartney". Não haveria, depois daquilo, mais um "Lennon barra McCartney". Era um grito de independência.

De alguma maneira, esse grito de independência também poderia ser ouvido no sintético e elétrico "McCartney II", disco que marcou a volta de Paul como artista solo após sete álbuns com o Wings.

Percebem? De novo, ao dar o sobrenome ao disco, Paul mandava um recado claro.

Paul McCartney - Mary McCartney / Divulgação - Mary McCartney / Divulgação
Paul McCartney lança 'McCartney III'
Imagem: Mary McCartney / Divulgação

Mas "McCartney III" se difere dos outros dois. Claro, nos três, ouvimos Paul a tocar todos os instrumentos, mas podemos ir além, não é?

Em primeiro lugar, porque Paul McCartney já é um artista solo desde aqueles anos 1980 (com exceção de alguns projetos especiais, como o duo eletrônico The Fireman). Desde "McCartney II", ele foi basicamente McCartney, portanto.

Talvez, "McCartney III" devesse se chamar "Paul". Aos primeiros segundos do álbum, na faixa de abertura, "Long Tailed Winter Bird", ouvimos um artista diferente daquele ao qual nos acostumamos a ouvir nas últimas décadas.

É, desde o princípio, um disco a quilômetros de distância do ótimo "Egypt Station", lançado por ele dois anos atrás. Aqui, Paul soa minimalista, rústico até. Toca um violão, enquanto acrescenta instrumentos, camada por camada.

É tudo tão absurdamente artesanal ouvir como "Long Tailed Winter Bird" ganha corpo. Dá para sentir o prazer de Paul em criar aquelas canções a mão, exatamente como foi: a cada dia, Paul se dirigia ao estúdio na fazenda e gravava um novo instrumento, talhava mais um pouco dessa obra.

McCartney, o músico das multidões

O Paul até "Egypt Station" era aquele McCartney dos estádios lotados, das canções grandiosas, dos hits eternos, dos refrões que ecoariam cantados por multidões. Aquele que veio um tanto de vezes ao Brasil nos últimos anos, inclusive. Se você esteve em algum dos shows das turnês brasileiras, saiba, esteve diante de McCartney.

O músico de "McCartney III", Paul, é intimista. É um artista que deixa a voz soar gasta pelo tempo, que não se importa necessariamente com o formato radiofônico das canções, embora não despreze o pop completamente.

Enquanto McCartney era, como disse acima, esse músico das multidões, Paul soa como o músico da solitude. Da canção como o contato mais íntimo que ele pode ter consigo próprio.

Não confunda esse sentimento com melancolia, contudo. Em "McCartney III", Paul faz uma ode à vida ao longo destas 11 canções espalhadas por pouco mais de 44 minutos de música.

Quando se imaginou aos 64 anos, Paul McCartney tinha uma visão inocente da velhice. Quatorze anos mais velho da imagem que ele havia criado "When I'm Sixty-Four", Paul é terno e afável ao olhar para o mundo.

Cria canções confortáveis de ouvir e ensolaradas, apesar dos tempos tão sombrios.

Ouvir "McCartney III" do início ao fim é como atravessar a porta de um celeiro erguido no meio de uma fazenda em uma manhã de verão e encontrar Paul McCartney ali, de cabelos branquinhos, vestido como um carpinteiro. Você ouve o riso da criançada do lado de fora, enquanto ele entalha a madeira sem pressa, dia após dia. Ao vê-lo, Paul acena, sorri. Chama para se aproximar dele e diz: "Sabe, quando eu era jovem, imaginava um futuro completamente diferente para mim. E, quer saber, eu gosto do futuro que vivo agora."

Se você conseguiu se imaginar nesta cena, bem-vindo a "McCartney III".