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Saramago: a escolha decisiva que deixa tudo 'perigosamente simples'

O escritor português José Saramago. - Divulgação
O escritor português José Saramago. Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

10/10/2022 04h00

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No dia 25 de novembro de 1975, após um episódio importante das reviravoltas políticas por qual Portugal passava, Saramago ficou desempregado. Aos 53 anos, era o momento de tomar uma decisão fundamental em sua vida. "Agora, José Saramago, tens de saber o que querer. Ou vais à procura de empregos, que te vão dar de comer e vais fazendo algum livrito que possas fazer nos intervalos, nos fins de semana. Ou decides se vai ser escritor", pensou.

O pé na bunda o levou a dedicar os dias à escrita. Não fosse por isso, provavelmente Saramago, até então autor de uma obra tímida, não viria a maravilhar leitores com romances como "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" e "Ensaio Sobre a Cegueira". Nesse exercício de imaginar como seria o caminho do português caso tivesse tomado outra decisão nos anos 70, não parece exagero pensar que o autor jamais chegaria ao Nobel de Literatura recebido em 1998 caso seguisse em seus empregos ordinários.

Saramago fala sobre o momento crucial de sua vida numa entrevista a Horácio Costa, professor de Literatura Portuguesa da USP e ensaísta autor de livros como "José Saramago: O Período Formativo" e "Mar Aberto". O papo aconteceu em meados da década de 80, num café em Nova York, e agora chega aos leitores na íntegra em "José Saramago - 6 de Novembro de 1985", breve volume publicado pela Ateliê Editorial com posfácio de Saulo Gomes Thimóteo e introdução do próprio Horácio. É mais uma das novidades que acompanham o centenário de nascimento do português.

"É como se houvesse dois momentos importantes na minha vida, no meio dos quais há um intervalo. O momento importante é a infância e a adolescência, segue-se um longo intervalo de vinte, trinta anos, durante o qual eu fui vivendo sem nenhum projeto próprio, sem nenhuma intenção, sem nenhum objetivo. O ir vivendo, apenas", comenta Saramago num outro momento. Ele prossegue:

José Saramago, livro de Horácio Costa. - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"A partir de uma certa altura - e repito, nos anos que estou a viver agora, e mais decisivamente a partir de 1975, 1976 - que a vida ganha, de repente, um sentido, no que toca à expressão dessa mesma vida. E que tudo de repente se tornou claro pra mim [...]. Então tudo se tornou talvez perigosamente simples, perigosamente simplificado - neste momento a vida para mim é uma coisa extremamente clara".

Na época do papo, Saramago era um nome em ascensão no cenário internacional. Com essa confiança sobre o que fazer da vida, compunha uma obra que está entre as mais admiradas pelos seus leitores. A conversa com Horácio aconteceu enquanto trabalhava numa história em que, na visão do autor, a Península Ibérica cumpriria a sua verdadeira vocação: descolar-se da Europa para, navegando pelos mares, aproximar-se da África e da América Latina.

O fantástico ponto de partida de "A Jangada de Pedra" reflete como Saramago se enxergava no mundo. "Sinto-me profundamente ibérico, ibérico, sim, não sou europeu, mas ibérico no sentido de qualquer coisa que tem que ver com a América Latina e tem que ver com a África".

São momentos interessantes de um papo que ainda passa por temas como a influência do barroco e da língua portuguesa do século 17 na literatura contemporânea, o conceito de romance histórico e a falta de proximidade entre os autores latino-americanos e os leitores de Portugal. Hoje, com o imediatismo angustiando tanta gente por aí, valioso observar como um dos maiores nome da literatura do século 20 só foi se encontrar mesmo com mais de 50 anos, e ainda a tempo de construir uma obra digna tanto do Nobel quanto, provavelmente, de uma vitalidade quer perdurará por séculos.

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