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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Soco violento e bife no olho: a coleção de fofocas sobre García Márquez

Gabo e o seu olho roxo - Rodrigo Moya/jornada unam mx/Reprodução
Gabo e o seu olho roxo Imagem: Rodrigo Moya/jornada unam mx/Reprodução

Colunista do UOL

12/04/2021 10h07

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Uma bela de uma porrada, isso sim. Um soco realmente violento. E quem diz isso não sou eu, não, mas meu xará Rodrigo Moya. E olha que ele entende de socos, viu!? Mario Vargas Llosa se aproximou e soltou o braço direito no rosto de Gabriel García Márquez, que caiu no chão e ficou ali sangrando. "A lente dos seus óculos quebrou na ponte do nariz", lembra Moya. Guillermo Angulo garante que o peruano, antes de golpear o colega, ainda falou: "Isto é pelo que você tentou com a minha esposa". Moya não lembra se foi China Mendoza ou Elena Poniatowska que foi comprar um bife para colocar no olho de Gabo. "E é tudo verdade".

Vamos com calma. Não sei se a verdade sobre a famosa porrada que Llosa deu em Gabo em 1976, no México, é exatamente essa, mas me parece uma boa versão para acreditarmos. Moya e Angulo, fotógrafos, foram amigos próximos de Gabo e são duas das quase 50 vozes que compõem "Solidão e Companhia - A Vida de Gabriel García Márquez Contada por Amigos, Familiares e Personagens de Cem Anos de Solidão". Grande compilado de versões para diferentes momentos da trajetória do escritor, o trabalho da jornalista Silvana Pastrnostro, publicado originalmente em 2014, acaba de sair no Brasil pelo selo Crítica, da Planeta, em tradução de Carla Fortino.

O ar de fofoca, o diz que me diz, é a grande sacada do livro.

Por que Gabo era tão inteligente? Por conta do óleo de fígado de bacalhau, talvez. "Minha mãe diz que Gabito ficou tão inteligente porque, quando estava grávida dele, tomou um monte de Emulsão Scott. Foi a única de suas doze gestações em que tomou óleo de fígado de bacalhau. E Gabito saiu tão inteligente por causa do óleo de fígado de bacalhau puro. Ela diz que ele nasceu cheirando a Emulsão Scott", recorda Eligio García Márquez, irmão mais novo da estrela.

A persistência na carreira de escritor, as dificuldades financeiras na Colômbia, na França e no México e as muitas ajudas que teve ao longo da vida são pontos recordados a partir de perspectivas diferentes. Sobre o fundamental apoio de Mercedes Barcha Prado, sua esposa, para que pudesse passar um ano trabalhando em "Cem Anos de Solidão" sem colocar nenhum dinheiro em casa, alguém lembra que a companheira falou ao final da empreitada: "Agora só falta esse romance ser uma merda".

Solidão e Companhia - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Há quem garanta que Gabo mudou bastante depois do Nobel. Se antes era ele que vivia importunando os outros, a ponto de rodas de conversa se desmancharem quando notavam que se aproximava, depois da coroação passou a se queixar de novos escritores que o amolavam com seus originais gigantescos. Na esteira da projeção global, a busca pela influência política e o fascínio por homens poderosos, o orgulho que tinha por ser atendido por chefes de Estado, a relação com autoridades como Bill Cllinton e Fidel Castro, rendem alguns dos momentos mais interessantes de "Solidão em Companhia"

De alguma forma, ler o livro de Silvana é como estar numa imensa mesa de bar com um monte de gente contando a sua própria versão de fatos envolvendo o grande escritor. Como em qualquer papo de boteco, às vezes a conversa anda por caminhos nem tão interessantes assim, martela demais num mesmo ponto (passe-se a impressão de que tudo conspirava para a criação de "Cem Anos de Solidão", por exemplo) ou fica truncada, mas vale a pena pedir mais uma cerveja e esperar que as coisas retornem aos eixos e as histórias (e as variações das histórias) voltem a ficar boas.

Nesse grande papo, vez ou outra alguém exagera, claro. Em certo momento, o escritor e jornalista Héctor Rojas Herazo afirma sobre o boom da literatura latino-americana: "Depois dele, o resto é medíocre. Ele é o verdadeiro criador ali; os demais são indivíduos, homens que tiveram boa publicidade".

Se a forma do livro nos faz lembrar das grandes histórias orais trabalhadas pela bielorrussa Svetlana Alexievitch, a multiplicidade de visões a respeito de uma mesma pessoa remete ao italiano Luigi Pirandello e o seu "Um, Nenhum, Cem Mil".

Silvana não procurou García Márquez para contar a história do escritor. A chave do trabalho não está na maneira como Gabo encarava a própria trajetória, mas no modo como aqueles que em algum momento foram próximos a ele enxergaram o caminho traçado pelo colombiano. Como a autora registra, "para apreciar este livro, é preciso deixar de lado a noção de que tudo na vida tem uma única verdade. A história oral ressalta a verdade de cada pessoa. Isso faz parte do seu encanto".

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