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Livro de memórias: Virginia Woolf relata abuso sexual sofrido na infância

Virginia Woolf - Arquivo
Virginia Woolf Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

10/09/2020 10h00

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"Havia uma laje logo na entrada da sala de jantar, para apoiar a louça. Certa vez, quando eu era bem pequena, Gerald Duckworth me colocou ali sentada e começou a explorar o meu corpo. Eu me lembro da sensação da mão dele enfiando-se por baixo das minhas roupas; descendo mais e mais, firme e continuamente. Eu me lembro de como eu torci para que ele parasse; de como eu enrijeci o corpo e de como me contorcia quando sua mão se aproximou das minhas partes íntimas. Mas ele não parou".

O relato é de Virginia Woolf. As palavras estão em "Um Esboço do Passado" (Nós), livro que acaba de ganhar a primeira edição no Brasil. Gerald Duckworth, o homem que assediou a pequena Virginia, era irmão por parte de mãe da garota que viria a se tornar uma das escritoras mais famosas da Inglaterra. É ela, já no final da vida, que prossegue:

"Sua mão explorou também minhas partes íntimas. Eu me lembro do meu ressentimento, do meu desgosto - qual a palavra para um sentimento tão estupefato e complexo? Decerto foi um sentimento forte, se dele ainda me recordo. Isso parece apontar que o sentimento em relação a certas partes do corpo. De que não se deve tocá-las; de que é errado permitir que sejam tocadas; deve ser instintivo".

Virginia registrou as memórias presentes em "Um Esboço do Passado" para tentar destravar a escrita da biografia na qual trabalhava, sobre o pintor e amigo Roger Fry. Os rascunhos (bem mais apresentáveis do que muita coisa que vem sendo publicada por aí após exaustivas reescritas) foram alguns de seus últimos textos. Ganharam o papel entre abril de 1939 e novembro de 1940, quatro meses antes de Virginia morrer, aos 59 anos, e tornaram-se públicos postumamente.

Os fragmentos se concentram na infância, na juventude e no começo do amadurecimento da escritora, que lembra com especial carinho da mãe e da meia-irmã Stella, cujas mortes lhe deixaram em estado de profunda tristeza. O machismo e as hipocrisias da sociedade vitoriana são questões tratadas pela autora por meio de suas memórias. Também é interessante o olhar crítico de Virginia sobre o próprio gênero memorialístico e a atenção que, tal qual a sua Mrs. Dalloway, dispensa às flores. Sua primeira lembrança se inicia com referência a essas maravilhas: "São flores vermelhas e roxas em um fundo preto - o vestido de minha mãe".

esboço - Reprodução - Reprodução
Um Esboço do Passado
Imagem: Reprodução

No entanto, é mesmo o detalhamento do abuso sexual sofrido na infância que mais chama a atenção em "Um Esboço do Passado". Segundo Ana Carolina Mesquita, doutora em Teoria Literária pela USP, pesquisadora da obra de Virginia e responsável pela tradução do livro para o português, nesses fragmentos de memória escritos já no final da vida que Virginia mencionou pela primeira vez tal violência. "É difícil saber por que ela resolveu fazê-lo naquele momento. Talvez não o tivesse feito antes pela 'vergonha' que, no texto, ela diz ter sentido? Talvez pelo puritanismo de que ela tão frequentemente se acusava, e que, em sua avaliação, tornava difícil para ela falar sobre a sexualidade?", cogita a pesquisadora e tradutora.

Ana aponta que estudiosos como a norte-americana Louise De Salvo atribuem ao episódio de assédio problemas como a doença mental de Virginia e seus distúrbios alimentares, enquanto críticos utilizam essa passagem da vida da autora para interpretar sua literatura com uma abordagem psicobiográfica. "Mas é uma questão espinhosa, em que não há como sair do campo das hipóteses. Com toda certeza, era uma lembrança traumática que ela, ao que tudo indica, manteve enterrada durante anos e anos", diz Ana, que prossegue:

"Pode ser que ela tenha mencionado [o assédio] em 'Um Esboço' devido ao momento específico que vivia, inundado pelas mortes de pessoas queridas. Além disso, a Segunda Guerra se deflagrava, com a ascensão do nazifascismo, e ela sabia que o mundo tal qual conhecia estava em vias de deixar de existir. A sensação de que a realidade se estreitava ao seu redor deve ter contribuído para que, naquele momento, Virginia desejasse fazer um acerto de contas consigo mesma e com os fantasmas de seu passado".

Em "Um Esboço do Passado", Virginia também menciona as aproximações, exigências e investidas com óbvio "desejo sexual" de George Duckworth, que ela também acusou de assédio em textos autobiográficos do começo dos anos 1920. Como Gerald, George era seu irmão por parte de mãe.

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