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Marcelle Carvalho

REPORTAGEM

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'Minha imagem é um ato político', diz David Junior, médico em 'Sob Pressão'

David Junior na pele do neurocirurgião Mauro: dificuldade em encontrar referências para compor o médico em "Sob Pressão" - João Faissal/Divulgação/Rede Globo
David Junior na pele do neurocirurgião Mauro: dificuldade em encontrar referências para compor o médico em 'Sob Pressão' Imagem: João Faissal/Divulgação/Rede Globo

Colunista do UOL

05/08/2021 04h00

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Vamos combinar: é um absurdo saber que em pleno século 21, atores negros ainda tenham dificuldade para encontrar referências que os ajudem a compor seus personagens. Pois é, David Junior passou por isso ao buscar exemplos de profissionais pretos que o inspirassem a criar o neurocirurgião Mauro, na série "Sob Pressão". O médico entrou na equipe no especial "Sob Pressão: Plantão Covid", exibido ano passado, e está de volta na quarta temporada da série, que estreia dia 12. A falta de representatividade em uma especialidade tão importante da medicina fez com que o ator pensasse o personagem praticamente do zero.

Cheguei a pensar: 'Como vou fazer, por exemplo, um cabelo que seria o de um neurocirurgião negro? Não encontrava nada e entrei em um conflito gigante. Então, cheguei para o Andrucha (Waddington, diretor): 'Já que a gente não tem uma referência, deixa eu criar a minha, posso deixar o meu cabelo?'. Ele bancou e eu fiquei muito feliz. A verdade é que minha imagem já é um ato político", comemora o ator.

Há quem veja isso como um mero detalhe. Mas o simbolismo por trás não dá para medir, ainda mais em um país onde 56% da população é negra. Porém...

A gente não tem essa representatividade em lugares de poder, fora do estado de subserviência. Portanto, eu começo algo do zero. Ao mesmo tempo, é muito gratificante poder representar essa porcentagem da população de maneira tão digna, empática e voltada para servir a vida. Porque, geralmente, na dramaturgia o que a gente vê é um homem preto tirando ou perdendo a vida", discursa.

É, meu povo, a missão não foi fácil. Entretanto, o médico Márcio Maranhão, consultor da série, apresentou David Junior ao neurocirurgião Ivan Santana, chefe do Hospital Miguel Couto. Um horizonte começou a ser descortinado.

Passei uma tarde na casa dele, trocando ideia, conversando sobre a vida dele como médico, o que passou para chegar nesse lugar. Ele já é mais de idade. Depois tive contato com outro médico que está se formando agora. Mas de maneira geral, posso dizer que tive uma relação com apenas um médico negro durante minha vida inteira e foi como paciente", conta David.

E para que ninguém ache que a falta de referências é uma bobagem, o próprio ator afirma que se surpreendeu quando este profissional se apresentou como médico.

Eu precisei de uma sutura e quando ele chegou, eu, na minha ignorância, achei que fosse enfermeiro. Quando ele disse que era médico, o choque foi imediato. E é absurdo eu, como pessoa negra, não conseguir codificar que outro pode ser um médico. É uma profissão quase inatingível para quem vem de periferia", constata.

Até a juventude, David só se relacionava com pessoas que trabalhavam com subemprego. Isso mudou quando conheceu amigos de Cabo Verde que faziam Odontologia, Medicina e Arquitetura.

Mas eram todos africanos, não brasileiros", pontua. "Então, percorri um caminho com que consegui buscar, do que pude estudar, além de filmes. Só que as produções apresentavam uma referência gringa, porque aqui eu não achei um produto que tivesse médicos negros."

Revolução dentro do elenco

Olha como são as coisas: a complicada procura de David Junior para encontrar profissionais que lhe pudessem ser referências, fez com que Drica Moraes, intérprete da médica Vera, se desse conta de que todos os seus médicos eram brancos. Mãe de um menino negro, a atriz, imediatamente, tomou uma decisão:

Resolvi trocar todos os meus médicos, menos o meu oncologista porque realmente eu devo minha vida a ele. Dentista, ortodontista, alergistas, dermatologista têm que ser preto. O mundo se abriu para mim de pessoas que estão ralando aí há anos, sem acesso, sem o véu da descoberta a ser desvendado. O que é que eu estou fazendo aqui que não vou atrás da minha representatividade? Foi um movimento muito legal. Aí já espalho, divulgo, e a rede se proliferou."

Não é uma ação afirmativa danada?

David não segurou a surpresa diante da atitude da colega:

Que bom! Se isso atingiu você que está dentro, Drica, imagina as pessoas de fora?

Meu Deus do Céu, porque não tenho médico preto, professor pro meu filho? Eu vou atrás de todo mundo, vou catar. Tem que ser bom, legal, ter conhecimento. Mas quando você vai atrás do Brasil, você encontra os brasileiros", afirma a atriz.