Luciana Bugni

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Opinião

Posso me colocar no lugar de Wanessa, mas nunca saberei como Davi se sente

Em uma casa cheia de gente, depois de vários drinques, dançando, empolgada, posso até esquecer que tem gente dormindo e entrar no quarto atrapalhando sono dos colegas sem querer. Por me colocar no lugar de Wanessa Camargo, não vejo nada demais em sua atitude — quantas festas na juventude, em viagens com quartos compartilhados, acabamos fazendo igual? Incontáveis. É fácil ser empática com o outro quando eu me imagino no lugar dele.

Nessas tantas festas, também já fui Davi. Aquela que vai dormir antes porque viaja cedo de volta no dia seguinte, ou tem trabalho a entregar logo cedo, ou cansou da vibe eufórica. Nessas ocasiões, me lembro de uma meia dúzia de vezes em que encarnei cenas dignas de "O Exorcista", berrando com o pessoal que entra no quarto tocando violão, no clima de acampamento "se eu não durmo ninguém dorme". Meus urros convenciam a galera de que era bobagem mexer com quem está quieto e inibiam o comportamento nos próximos dias de diversão. Sim, meio antipática de vez em quando. Acontece.

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Porém, claro, nunca estive em uma situação em que poderia contribuir para a expulsão dos músicos e dançarinos invasores na madrugada dessas ocasiões. O máximo desdobramento da minha fúria era algum comentário no café da manhã — "Estava nervosinha ontem, hein?". A mim cabia confirmar: não me acorde às 5h, eu fico meio nervosinha mesmo e demoro umas 3 horas para dormir de novo. O climão não vale a piada.

O desdobramento do momento em que Davi foi acordado por Wanessa na madrugada de sexta é maior ainda: ela foi expulsa de um jogo em que todos disputavam milhões de reais. As regras não toleram agressão e, por isso, a discussão sobre ser justo ou não fica meio genérica. Dar um tapa em alguém, na minha concepção, é diferente de batucar em uma cama sem, talvez, perceber que há alguém sob o edredon. Mas isso pensando como Wanessa — como eu disse, é fácil se colocar no lugar dela.

Entretanto, se eu consigo me lembrar da irritação que sentia em viagens em grupo com a festividade excessiva quando eu estava em outro clima, jamais vou poder me colocar no lugar de Davi, um homem preto. Eu, mulher branca, nunca senti o acúmulo do rancor provocado por anos de racismo. Dá para dizer que Davi jogou com a entrada de Wanessa no quarto, mas não dá para supor que sua reação foi desmedida.

O racismo estrutural, aquele do dia a dia que nós, brancos, nem percebemos que cometemos, deixa marcas profundas e muita dor. Não nos cabe julgar o momento da explosão. A luta antirracista é justamente acabar com ele na raiz — agressões cuja intenção não era bem essa podem doer tanto quanto as criminosas agressões racistas clássicas.

Por que a bronca do pessoal na casa com Davi era (e é) tão grande? Wanessa expulsa injustamente não ajuda a vibe da galera na casa contra o garoto. Há outras suposições em jogo: circula na internet um vídeo em que Wanessa sugere a própria expulsão. Ficou claro nessa edição que o tratamento de famosos e anônimos difere, o que torna ainda mais sem cabimento um castigo nesses moldes.

Resumindo: a suposta injustiça com Wanessa é um assunto que pode ser questionado. Contudo, cada vez que um de nós, brancos, for julgar a raiva que sentiu um rapaz preto, nos cabe lembrar que não somos sequer capazes de entender aquela dor — que pode sair de maneira desmedida. Há muitas nuances no julgamento e na vontade que sentimos que todos sejam tratados da mesma maneira. Infelizmente ainda estamos longe desse ideal.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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