Um chef hardcore

Henrique Fogaça abre o jogo sobre críticas ao "MasterChef", cannabis medicinal, amizades da TV e fama de mau

Carlos Eduardo de Oliveira Colaboração para Nossa Fernando Moraes/UOL

Da Piracicaba natal, Henrique Fogaça pouco (ou nada) lembra. Morou lá só até os oito anos, mudando com a família para Ribeirão Preto, seu universo até os 21 anos. Foi lá que, ainda na adolescência, o chef "abraçou" o punk como filosofia de vida. Que mantém ate hoje.

"Sou mais paulistano que paulista, vivo aqui há 23 anos", brinca. Cidadão do mundo, 49 anos, Fogaça tem sua base na avenida Paulista, a curta caminhada do Sal Gastronomia, o primeiro restaurante.

Na Pauliceia, os caminhos pré-sucesso na cozinha foram tortuosos. Foi bancário, cursou (e largou) arquitetura, o mesmo com comércio exterior. Vendeu sanduba na Kombi, na rua e de porta em porta. Até ouvir o canto da sereia das panelas. Esse seu mise en place pessoal ilustra as páginas de "Um Chef Hardcore", o primeiro livro (2017). Título pra lá de apropriado.

Em 2014, o convite para integrar a bancada do "MasterChef" mudou toda uma perspectiva. Que ele parecia adivinhar: "Vamos ver o que aparece. Se for bacana, a gente vai pra cima", é sua frase-fetiche.

O grau de sua evidente vaidade — tantas tatuagens não mentem — "é aceitável", ele diz. "Percebo no dia a dia a diferença de estar bem comigo mesmo. Tenho amigos que desencanaram da vida, comem demais, bebem demais, não têm mais objetivos. Eu procuro manter minha jovialidade. Através do Oitão, do rock, do esporte, praticando muay thai. Cuido do corpo e da mente."

Fernando Moraes/UOL
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Minha fama de mau

O ocasional mau humor estudado do "MasterChef" é só fachada da persona pública, ele sustenta.

"Não sou assim. Mas se no programa você me apresenta um prato, tenho que cobrar, às vezes cobrar forte. E a edição aumenta mais ainda essa percepção das pessoas."

Acredito que, na vida, as coisas só fluam através da verdade. Então, do jeito que sou aqui, sou em qualquer situação"

Em uma cena de "Memórias", filme em que Woody Allen emula Fellini e seu clássico "Oito e Meio", o protagonista (Allen), um cineasta em crise, ouve de um tiete mais exaltado: "Sua mãe faz compras no mesmo supermercado que a minha". No dia a dia do Henrique Fogaça pós-MasterChef, as coisas são parecidas.

A todo minuto, de clientes a passantes na rua, fornecedores e muitos eteceteras, difícil quem não queira foto ou filmagem. Ou ambos. Chamadas de voz para amigos e parentes, também. Paciente, meio tímido, até, o chef atende a todos. Até quando está comendo.

Não me importo. Essa é a parte gratificante da fama: o carinho. As pessoas idealizam algo pela TV, mas eu quando chego em casa e olho no espelho, vejo o mesmo Henrique de sempre, e não o Fogaça do 'MasterChef'"

Henrique Fogaça

Amizade além das câmeras

No "MasterChef", a cumplicidade da bancada que comanda o programa é um dos trunfos que cativa a audiência. Um triunvirato aparentemente sólido e harmônico. Afinal, rola amizade longe das câmeras?

"Diria que temos uma boa proximidade. Há momentos. O Jacquin, por exemplo, é chatinho, no programa às vezes dá uns 'pitis', mas gosto muito dele. Às vezes a gente se reúne e faz uma comida. Nos anos todos que estou lá, a Paola (Carosella) saiu, entrou a Helena (Rizzo). E ontem mesmo a Paola deu um alô tipo, 'Bora marcar lá em casa no fim de semana?'. Foi até coincidência, eu já havia pensado em falar pra virem todos no Sal. Apesar de convivermos diariamente, é importante ter esses escapes."

Falando em escapes, o compliance do "MasterChef", Fogaça esclarece, não chega a ser uma camisa de força. "Existem alguns pontos. Envolve até um pouco da vida particular, mas no geral é de boa. Porque tudo é conversável. Obviamente, não posso ir a programas semelhantes. E há as marcas que apoiam, então nada pode bater de frente. Mas no geral, é tranquilo."

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O preço da boa comida

Menina dos olhos de Fogaça, o Sal Gastronomia, seu primeiro restaurante, tem uma vibe peculiar. Boa comida, ambiente relax, público laid-back, sem afetações. Não por acaso, inúmeros roqueiros internacionais de passagem pela cidade fazem pit stop por lá. Resta, no entanto, uma reflexão: comer em restaurante de chef famoso não deveria ser mais barato?

"Sempre briguei por isso. Se você se lembrar, fiz o Mercado Feira Gastronômica (em 2012, com o chef Checho Gonzales), um dos primeiros eventos de comida de rua. A primeira edição foi aqui (aponta o pátio interno do restaurante). Sempre bati nessa tecla."

Hoje, falam, ah, o Fogaça isso, e aquilo, mas a verdade é que é no Brasil é muito caro empreender com todas as taxas e impostos. É como uma faca no pescoço. Então, tenho que agregar valor, do contrário não consigo gerar empregos"

O Sal tem filial no shopping Cidade Jardim. Com filiais em Curitiba, Brasília e Goiânia, o gastrobar Cão Véio tem duas unidades em São Paulo. No Jamile, no Bixiga, Fogaça é sócio do empresário e amigo Alberto "Turco Loco" Hiar. No Rio, o chef teve, além do Sal, o Sal Grosso, operações finalizadas com a pandemia.

Lá, estava difícil. Até tentamos voltar, mas preferi fechar. Agora é correr atrás do prejuízo. Juntar os cacos, com determinação e coragem"

Ele afirma que deve abrir mais duas casas em Sampa e "fechar a conta". Fora as pautas internacionais:

"Tá no radar. Em Miami, fui, olhei, estudei, ia abrir, mas me convidaram no (shopping) Cidade Jardim. Montei aqui e tirei o pé de lá. Mas não de Portugal, onde tenho muita vontade e devo montar algo, mais à frente."

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A cozinha, esta desconhecida

Nem tudo é glamour dentro de uma cozinha. Repercussões de assédios dos mais variados por vezes desconstroem o clima happy-go-lucky dos shows culinários televisivos.

"Acontece. A gente ouve as histórias. Comigo nunca aconteceu. No Sal, nas minhas cozinhas, não rola. Mas admito que a cozinha é um ambiente que propicia muito que isso aconteça."

Fogaça diz ter o termômetro antirruídos. Mesmo em um cotidiano multitarefas, seu "olho clínico", ele afirma, opera sempre no módulo "on".

O cozinheiro diz ter seu cotidiano multitarefas facilitado por uma equipe afiada, que comunga seus credos culinários e administrativos. Na parte de escritório, é ajudado pelo irmão Guilherme, que cuida também dos aspectos societários; da cozinha pra dentro, "tenho uma equipe de ótimas pessoas, que entendem minha filosofia de trabalho e a minha forma de liderança."

Hoje, não fico mais o dia inteiro na cozinha. Mas estou sempre ciscando, finalizando pratos. E não tem erro: é só pisar na cozinha que já ganho a vibe do que está rolando"

Henrique Fogaça

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As críticas ao 'MasterChef'

Inegável que o "MasterChef" — de novo o programa — elevou a muitas potências o interesse por realities culinários e afins — a "televização" da cozinha. Para o bem e para o mal.

"Acho que mais democratiza (a gastronomia) que banaliza, embora também banalize um pouco. Eu acho legal. Sabe por quê? A cozinha é submundo, underground. Um clima tenso. A real cozinha sempre está escondida, então acho importante mostrar isso."

Ademais, estamos num país tão grande que a diversidade regional ficava escondida, e os programas foram uma forma de levantar essa bandeira das diferentes cozinhas e produtos brasileiros"

Ok, mas e os "chefs de Instagram"? "Hoje tem um monte, né? Mas o cara pode ser um fodão em suas postagens, porque hoje a internet permite isso: democratiza, mas também banaliza. Mas não importa: no final sempre vai sobrar só quem de fato é."

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Um break no 'MasterChef'

No começo de 2023, o chef causou apreensão, ao anunciar uma pausa na já longeva jornada como uma das estrelas do programa MasterChef.

''É temporário", avisa. "Fiz essa pausa para conseguir me dedicar aos projetos pessoais e profissionais, principalmente no que diz respeito à família." Fogaça esclarece que estará de volta ainda este ano.

Retorno ainda em 2023, vou dar continuidade a essa incrível experiência de vida, nas temporadas do 'MasterChef Profissionais' e 'MasterChef+'''

Em fevereiro e março, realizou cinco jantares em Portugal, a quatro mãos com chefs lusos de renome — entre eles, mestre Vitor Sobral, que tem restaurantes no Brasil — para o lançamento do seu livro "O Mundo do Sal" (Editora Essential Ideias).

Da Terrinha, embarcou para a Espanha e, a seguir, para a África, onde recentemente realizou jantares em Angola a quatro mãos com o chef angolano Anselmo Silvestre.

"Foi uma grande honra poder ir para Angola, para mostrar minha essência e o que eu acredito na gastronomia. Pudemos valorizar a comida e cultura regional de ambos os países, além de mostrar a verdadeira importância desta conexão gastronômica."

"Falar de política é complicado"

Já de algum tempo, a chef e ex-colega de "MasterChef" Paola Carosella vem sendo apedrejada por conta de suas opiniões antibarbárie. O preço da fama seria policiar-se em suas posições?

"Sim. Falo o que vi, o que penso e, em algumas ocasiões, já caí em situações controversas. Porque de certa forma a gente é vitrine. Tem exposição", diz.

Minha principal profissão é gastronomia, então me interessa falar de comida. Levantar bandeiras sobre política, religião e sexualidade é meio complicado, tem divergências. Muitas vezes, o melhor é ficar de boa"

"Óbvio que tenho minhas convicções, que o punk me trouxe desde criança, um tipo de revolta saudável. Deixo a reflexão social para minhas letras no Oitão. Lá é meu canal para falar", completa.

E elas nem sempre são gentis com políticos. Ao contrário: "Instinto Sujo", por exemplo, fala em enquadrá-los de modos nada lisonjeiros. Se tivesse o condão para o "enquadro" que a letra clama, chef, como seria? No voto ou na porrada?

"Numa boa democracia, seria pelo voto, né? Mas não quero falar de política, é complicado. Sou um empresário que começou do zero, vendendo sandubas. Vários amigos que começaram estágios aqui comigo hoje abriram seus negócios e bares, conseguiram consolidar-se, ter oportunidades."

O grande intuito de uma sociedade democrática é oferecer oportunidades iguais, e é isso que faço nos meus restaurantes. E os que representam o povo também deveriam estar ao lado dos trabalhadores"

Henrique Fogaça

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Precisamos falar de cannabis medicinal

Inegável que, além da fama, o "MasterChef" funciona como trampolim para outros projetos de seus protagonistas — o que inclui oportunidades publicitárias e afins.

"Meu limite ético? Tudo que não tenha nada a ver comigo. Por dinheiro algum anunciaria coisas que não se encaixem no que acredito que seja a vida ou a gastronomia", dispara.

"Por outro lado, se você fica muito preso a determinados conceitos, não consegue expandir e abrir novos caminhos."

Um desses novos caminhos é um instituto através do qual o chef vai militar em prol da cannabis medicinal. A inauguração é em breve. Tudo desenvolvido em bases científicas, com uma equipe multidisciplinar. "A cannabis medicinal é aplicável a cerca de 20 a 30 doenças. Ou mais", observa Fogaça.

O conceito, ele explica, tem a ver com a filhona Olívia, 15 anos, uma adolescente especial, por conta de uma síndrome rara. E que tem reagido bem, obrigado, ao uso do medicamento.

Aprendi muito com a Olívia usando canabidiol nesses anos todos. Isso melhorou muito as expressões dela e as convulsões que ela tinha. Então, para mim é muito claro que as pessoas têm que ter acesso a esses benefícios. Trazer essa informação de forma clara, para que as pessoas, especialmente as de menor poder aquisitivo, possam ter acesso através do próprio governo. Nossa intenção é trazer o canabidiol para dentro do SUS"

Henrique Fogaça

Eduardo Firmino

Alter ego rock'n'roll

Encarar de frente o som do Oitão, a banda de Henrique Fogaça, é tarefa para iniciados — o próprio nome já entrega: é punk rock/hardcore raiz, xiita, sem concessões. Letras urgentes por trás de palavras simples, até. E sonzeira comendo solta.

De certa forma, a banda é o alter ego do chef, condensando muito do que ele é, acredita e pratica: seu universo, suas referências, credos, comunhões, estilos, amizades, contestações, parceiros de negócios — sua vida rock'n'roll, enfim.

Na ativa desde 2008, dois discos lançados e um terceiro em fase de estúdio (mas ainda sem título), o Oitão foi escalado para o último Rock in Rio, em setembro.

Um dia, o (Roberto) Medina foi no Sal, no Rio. Nos conhecemos, ele disse que queria conhecer algumas coisas da banda, eu apresentei. E o convite rolou"

Oitão, banda em que Henrique Fogaça é vocalista - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Antes da pandemia, o quarteto era presença constante em festivais de rock alternativos — a agenda deu um salto à canguru, a partir do sucesso do "MasterChef". 90% das letras são de Fogaça. "4º Mundo", a primeira pedrada, saiu de forma independente em 2004; em 2015 saiu "Pobre Povo", na mesma "pegada" nervosa.

Obviamente, muitas vezes a agenda do chef colide com a do grupo. "Paramos em 2017, por falta de agenda e também de sintonia na banda", diz. Após mudanças na formação, o Oitão voltou à cena como quinteto, com a adição de outra guitarra.

"(O som) Tá um pouco diferente. Antes, era hardcore seco, poucas notas. Agora, está mais groovado."

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