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Paixão paulistana, pastel foi motivo de guerra entre feirantes e prefeitura

Pastel de feira já é uma instituição paulistana e tem muita história - Getty Images/iStockphoto
Pastel de feira já é uma instituição paulistana e tem muita história
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

09/07/2023 04h00

Pastel pode ser doce ou salgado, grande ou miudinho, frito, assado ou cozido no vapor. Em Portugal, tem massa folhada e formato de empadinha — vide os famosos pasteis de nata produzidos pela Antiga Confeitaria Belém.

Agora, quando o assunto é pastel de feira, não tem discussão. Nessa categoria, só entram os pastelões enormes, fritos na hora, com massa coberta de bolhas e um tantão de recheio. A primeira mordida é sempre tensa — quem não deixa o vapor escapar acaba queimando o beiço.

Coisa mais sem graça ir à feira sem comer pastel. Sorte que as barracas dos pasteleiros seguem firmes como um verdadeiro patrimônio paulistano.

Segundo a Secretaria das Subprefeituras, há 847 autorizações ativas na cidade. Estrategicamente posicionadas nas pontas das feiras, onde há mais espaço para espalhar bancos e mesas, as barracas começam a função muito cedo e enfrentam a concorrência na base da criatividade. Quanto mais bandeirolas penduradas no varal, mais sabores para escolher.

A origem dessa forma tão particular de fazer pastel, não se sabe ao certo, mas não há dúvida de que é técnica importada.

Pastel de feira tem origem incerta - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Pastel de feira tem origem incerta
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Segundo Luís da Câmara Cascudo, autor de "História da Alimentação no Brasil" (Global Editora), indígenas e africanos não conheciam o processo de fritar. Europeus sim, mas a receita pode ter vindo de mais longe — há quem enxergue nosso pastel de feira como uma variação do rolinho primavera chinês, e quem defenda que ele é neto do guioza japonês.

Estrela da feira

A relação com os japoneses faz mais sentido quando se conhece a história das feiras livres paulistanas. Elas já existiam de maneira informal, bem bagunçada, como aglomerados de ambulantes, desde meados do século 18.

Eram eventuais, sem data certa, mais para divertir do que para abastecer", explica o pesquisador Antonio Hélio Junqueira, coautor de "100 Anos de feiras livres na cidade de São Paulo" (Via Impressa).

Pastel de feira é quitute oficial do comércio de rua de São Paulo - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Pastel de feira é quitute oficial do comércio de rua de São Paulo
Imagem: Getty Images/iStockphoto

As feiras como as conhecemos hoje só passaram a existir oficialmente em 25 de agosto de 1914, a partir de um decreto do então prefeito Washington Luís Pereira de Souza.

O Ato nº 710 criou os mercados francos, ou feiras livres, como uma resposta a movimentos sociais encabeçados por anarquistas, trabalhadores e sindicalistas, que exigiam acesso a alimentos mais baratos — nesses novos espaços, os produtores poderiam comercializar sua produção sem recolher tributos. O adjetivo livre, no caso, se refere a livre de impostos.

Os imigrantes japoneses sempre tiveram participação ativa nas feiras porque suas famílias se dedicaram à agricultura, nos municípios ao redor da capital, desde a chegada por aqui.

No entanto, muita gente ainda relaciona os pasteis aos chineses — e foram os próprios japoneses que deram origem a essa confusão, na década de 1940. Como o Japão lutou ao lado da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, o país tornou-se inimigo do Brasil, que se alinhou aos Aliados.

Pelas ruas paulistas, repletas de imigrantes, o chamado "preconceito amarelo" assustava quem tinha olhos puxados. Para se protegerem, os pasteleiros japoneses preferiam se apresentar como chineses, que estavam com os Aliados na disputa. Como a maioria da população não sabia diferenciar uma nacionalidade da outra, o pastel de feira virou assunto de chinês.

Barracas de pastel de feira livre em São Paulo - Getty Images - Getty Images
Barracas de pastel de feira livre em São Paulo
Imagem: Getty Images

Guerra do pastel

Até hoje, os descendentes de japoneses dominam as barracas de pastel nas feiras de São Paulo e são testemunhas vivas de um período turbulento, em que os pasteleiros entraram para a clandestinidade.

Segundo Junqueira, a capital paulista foi palco de uma verdadeira guerra dos pasteis há cerca de 50 anos. Tudo começou com o Decreto nº 8786, de 21 de maio de 1970, que proibiu a venda de pasteis nas feiras livres.

Agentes da fiscalização sanitária argumentavam que era impossível saber como as massas e recheios eram preparados, longe dos olhos do consumidor. Também implicavam com os utensílios de madeira e alegavam risco de explosão dos botijões de gás.

Kuniko Yonaha, do Pastel da Maria - Divulgação - Divulgação
Kuniko Yonaha, do Pastel da Maria
Imagem: Divulgação

Na clandestinidade, os pasteleiros passaram a conviver com as investidas cotidianas do "rapa". A japonesa Kuniko Yonaha, 71 anos, proprietária da rede Pastel da Maria, já ajudava os pais nessa época e cansou de fugir dos fiscais.

A gente alugou um fundo de quintal, perto da feira, para fritar os pastéis. Quando aparecia o rapa, eu virava a caixa e jogava tudo no chão, para impedir que os fiscais apreendessem tudo e ainda comessem nossos pastéis."

Em junho de 1976, o prefeito Olavo Setúbal tirou os pasteleiros da clandestinidade, mas a paz ainda estava distante. O processo de licenciamento durou mais dois anos, com muitas brigas entre feirantes e o poder público, até que um novo decreto, em agosto de 1978, regulamentasse o trabalho de 866 pasteleiros.

Kuniko Yonaha (que passou a se apresentar como Maria para facilitar a relação com a clientela) lembra que o rapa não era a única dificuldade na rotina dos pasteleiros. A vida era dura e sem descanso. Como não havia máquinas nem freezer, todo o processo era manual, preparado na véspera da feira.

Pastel da Maria - Divulgação - Divulgação
Pastel da Maria
Imagem: Divulgação

"A gente começava no fim da tarde a fazer a massa e os recheios. Quando terminava de fechar os pastéis, já era madrugada e estava na hora de ir para a feira. Só dava para dormir um pouquinho na volta, depois do almoço."

Hoje, a realidade é outra. Com duas lojas fixas e presente em 10 feiras paulistanas, o Pastel da Maria emprega 45 funcionários. Na cozinha, máquinas cozinham os recheios, cilindram a massa e fecham os pastéis.

Outras famílias japonesas cresceram no setor. A barraca dos Miyasato, além de bater ponto em diversas feiras pela capital paulista, é a mais antiga em atividade no Ceagesp e está sob os cuidados da terceira geração.

Desde 1991, funciona tanto nas feiras noturnas quanto no chamado varejão, aberto ao público em geral. Uma das invenções da trupe é o pastel especial, cerca de 30% maior do que os tradicionais, que vem com três sabores: carne, frango com Catupiry e carne-seca.

Feira é onde tiver pastel

Fachada da pastelaria Yoka - Divulgação - Divulgação
Fachada da pastelaria Yoka
Imagem: Divulgação

E nem é preciso estar na feira para fazer pastel de feira. Luiza Yokoyama, herdeira da pastelaria Yoka, sempre trabalhou em ponto fixo, com porta de entrada e mesinha para os clientes — não confundir com a rede Yokoyama, que pertence a outra ramificação da família.

"Meu pai começou antes da guerra, em um ponto na Rua da Cantareira, ao lado do Mercadão. Eu assumi em 1996, já na loja da Liberdade", conta Luiza, que agora tem o filho Jobson Ohno, formado em gastronomia, como braço direito.

A massa da Yoka impede a família de montar barraca na feira — a receita, guardada a sete chaves, precisa ficar sob refrigeração até o momento de ir para o óleo. Luiza só comete uma indiscrição: assume que um pouquinho de cachaça, adicionada à massa, garante bolhas pequeninas e mais uniformes.

Pastel japonês, da pastelaria Yoka - Divulgação - Divulgação
Pastel japonês, da pastelaria Yoka
Imagem: Divulgação

Um dos hits da Yoka é o pastel japonês, que leva tofu, cebolinha, shitake e kamaboko, a mesma massa de peixe que tempera o lámen e deixa traços cor-de-rosa choque no recheio.

Mas o pastel de carne com ovo cozido, receita do seu Takashi, pai de Luiza, nunca saiu do cardápio. É um dos pedidos preferidos pelos gulosos, junto com o pastel de palmito com camarão, por causa do tamanho — são os dois maiores, que chegam a pesar 350 gramas.

"Quando comecei, eles eram menores, mas foram aumentando em função dos pedidos dos clientes", ela conta. Quem poderia julgar?

Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do informado, a China estava ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial