Como a 3ª maior colônia japonesa do Brasil surgiu em plena Amazônia
No início da década de 1920, o governo do Pará procurava povoar o estado. Para isso, incentivou a imigração de japoneses, que passavam por uma recessão econômica em seu país.
O acordo deu origem à 3ª maior colônia japonesa do Brasil — superada apenas por São Paulo e Paraná. Tomé-Açu, com 62 mil habitantes e distante 200 quilômetros de Belém, chegou a ser um campo de concentração durante a 2ª Guerra Mundial e, atualmente, é referência pelo sistema agroflorestal implantado pelos nipônicos.
Assim que chego em Tomé-Açu, não é difícil encontrar comida japonesa. Pratos como katsudon e guydon são servidos em lanchonetes a preços populares. No Mizuk Bar, por exemplo, um Missô Lámen custa R$ 16.
Na Nippon House, Maria Tomoe Kikuchi diz que o que mais costuma servir são unha de caranguejo (espécie de coxinha paraense recheada de carne de caranguejo) e lámen. E o seu tempurá é preparado com jambu (erva amazônica).
Início da imigração
Diferente dos nipônicos enviados ao centro-sul para trabalhar para os barões do café, os que chegavam à Amazônia recebiam outra proposta: teriam suas próprias terras para cultivo.
O primeiro navio a ancorar no Pará chegou em 1929. As 42 famílias que estavam a bordo foram destinadas a onde hoje é Tomé-Açu.
Hajime Yamada, então com dois anos, estava entre os que desembarcaram. Nascido em Hiroshima, morou em Tomé-Açu praticamente toda sua vida. Prestes a completar 95, ele lembra:
Era tudo mata virgem. Não tinha nada, nem escola"
Além da falta de infraestrutura, o ambiente até então selvagem era propício para malária, que vitimou muitos. Outros não sobreviveram a ataques de animais, como cobras.
As adversidades se estenderam à adaptação às comidas. Hajime cai na gargalhada ao recordar:
Quando era moleque, mamãe comprou pupunha [fruta típica da Amazônia], mas não soube preparar. A pupunha tem que cozinhar bem. Senão, dá coceira na boca. E eu a comi meio crua, deu a maior bronca"
O ancião afirma que, aos poucos, a troca de cultura entre imigrantes e nativos fez com que sua família se habituasse. "A minha mãe gostava muito de bater papo. Não falava português, mas se comunicava. Todo mundo gostava dela. Isso foi uma vantagem".
Campo de concentração
Hajime diz que sua mãe não só ajudou a família a quebrar barreiras culturais, como os protegeu durante a 2ª Guerra Mundial. O Japão, por lutar junto com a Alemanha, passou a ser visto como inimigo do Brasil. Japoneses e descendentes, também.
Assim, Tomé-Açu, cujo acesso se dava apenas por rio, passou a funcionar como campo de concentração para esse público — ainda que sem trabalho forçado ou extermínio em massa.
O governo brasileiro tomou o controle dos transportes fluviais e deixou a colônia isolada. Para evitar "conspirações", nipônicos foram proibidos de se reunir em grupos e meios de comunicação foram tomados.
Hajime muda o semblante e fica sério ao detalhar o período que descreve como "anos de sofrimento". "Minha mãe era muito comunicativa e ninguém da minha família foi preso. Mas 90% das pessoas que moravam aqui, foi".
Longe dali, a represália sofrida era ainda maior.
O pessoal [japoneses e descendentes] de Belém, por exemplo, teve casas e roupas queimadas. Aí correram para Tomé-Açu, onde tinham uma 'liberdade'"
Os nipônicos que residiam em outras cidades eram enviados pelo governo do Pará ao campo de concentração. "O administrador da colônia era o Capitão Evangelista, que era um homem que entendeu que os japoneses não tinham nada a ver com a guerra. Ele foi muito bem-quisto", lembra Hajime.
"Capitão Evangelista recebeu os imigrantes e mandou uma ou duas famílias para morarem com as famílias imigrantes locais. Nós ficamos com duas por três anos, até acalmarem as coisas. Aí cada qual voltou pro seu lugar".
Diamante Negro
Em 1945, a Guerra chegou ao fim. E, na década de 1950, Tomé-Açu começou a viver sua maior prosperidade econômica com a pimenta-do-reino. Hajime volta a rir: "O preço era absurdo, aí colocaram o nome de 'Diamante Negro'. Todo mundo começou a plantar pimenta".
O primeiro carro que o papai comprou foi com mil quilos de pimenta! Hoje, só dá pra comprar uma bicicleta".
Silvio Shibata, diretor presidente da Associação Cultural de Tomé-Açu (ACTA), explica o caminho que a pimenta fez até chegar à colônia: "Vindo do Japão, uma senhora faleceu a bordo. E, para poder retirar o corpo, foi necessário atracar em Singapura. Nisso, um senhor desceu e conseguiu comprar 20 mudas de pimenta-do-reino, que vieram no navio".
Dessas 20, apenas duas sobreviveram. Na década de 1950, já tinha 400 mil plantas formadas. Foi a maior produção de pimenta-do-reino a nível mundial"
Cultura japonesa
Essa história está retratada no Museu da Imigração Japonesa de Tomé-Açu, mantido pela ACTA. O estabelecimento reúne desde fotos e objetos de viagem dos pioneiros até registros da visita da princesa do Japão à cidade, em 2018.
A Associação é responsável pela preservação de tradições japonesas e realiza eventos como Undokai (gincana esportiva) e Bon Odori (festival em homenagem aos espíritos ancestrais).
Além disso, a ACTA mantém a Escola Nikkei, que oferece educação do ensino primário ao médio, e a Escola de Língua Japonesa — segundo Silvio, a mais antiga do Brasil. O diretor relata que "praticamente todas" as famílias descendentes de japoneses matriculam os filhos para aprender o idioma.
Ao mesmo tempo, porém, já houve alguns embates culturais na Escola Nikkei. "Tentamos inserir costumes. Por exemplo, no Japão, é o aluno quem varre e arruma a sala no final da aula. Mas a cultura brasileira é diferente. Vieram reclamar: 'Por que meu filho tem que fazer a limpeza, se eu pago a mensalidade?'. Não entendem que é um ensinamento. Não deu certo", lamenta Silvio.
Fora da associação, o diretor conta que a comunidade japonesa de Tomé-Açu também tem uma conexão forte com o templo budista da cidade, ainda que muitos descendentes tenham se convertido ao cristianismo. "A maioria é velada no templo budista. É uma coisa a qual nós já estamos acostumados".
Quem visita a cidade a turismo, além de encontrar esses marcos da imigração, também costuma conhecer o Sistema Agroflorestal de Tomé-Açu (SAFTA) e a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (CAMTA), grande produtora de óleos e polpa de frutas da Amazônia. Ambos implantados pelos japoneses.
Silvio explica: "O sistema imita ao máximo a natureza intacta, com plantações de frutas como açaí, cupuaçu e mangostão. Tem a fazenda do Valter Oppata, Alisson Inada, Dai Takaki, Francisco Sakaguchi... A mais famosa hoje é a do Michinori Konagano".
Declínio do Diamante Negro e ascensão das frutas tropicais
Michinori, nascido em Kagoshima, chegou em Tomé-Açu aos dois anos de idade, em 1960, perto do fim do "Diamante Negro", quando pimentais foram dizimados por pragas e chuvas.
O agricultor explica: "25 anos atrás eu voltei para a minha cidade natal e me perguntei: 'Por que meu pai foi para Tomé-Açu sofrer?'. Lá eu entendi. É uma região montanhosa, não tinha como expandir mais a área [para plantar]".
No início de 1970 choveu muito e os pimentais ficaram inundados. Eu era moleque e lembro do pessoal cavando vala com enxadeco, mas não tinha mais jeito. A pimenta estava morrendo. Muitos saíram daqui de Tomé-Açu. Ficou só quem não tinha dinheiro"
A família de Michinori, então pobre, foi uma das que permaneceu na cidade. "Tivemos dificuldade financeira porque não tínhamos recursos. Meu pai também não tinha capacitação para cultivar pimenta-do-reino, porque produzia verdura no Japão".
Quando deixou a casa dos pais, desfavorecido economicamente e com ensino fundamental incompleto, Michinori precisou aproveitar ao máximo seu pequeno pedaço de terra, plantando diversas espécies juntas. Sem ter consciência, começou a trabalhar com o sistema agroflorestal. "Era lei de sobrevivência. Eu não tinha orientação de ninguém".
Enquanto isso, a cidade ainda tentava se recuperar do declínio da pimenta-do-reino. "A CAMTA procurou alternativas e encontrou uma com os ribeirinhos", conta Michinori. Durante as viagens de barco feitas entre Tomé-Açu e Belém, os membros da cooperativa observaram o cultivo de frutas tropicais, nas quais investiram.
Depois que as plantações voltaram a prosperar com novas espécies frutíferas da Amazônia em Tomé-Açu, a cooperativa instaurou uma agroindústria para processar as polpas das frutas e vendê-las congeladas. Com isso, o cenário começou a mudar.
SAFTA
Hoje, o sistema agroflorestal de Tomé-Açu implantado pelos japoneses recebeu até selo de certificação. E Michinori se esforça para ensinar a técnica ao maior número de pessoas, desde pesquisadores japoneses a paraenses que vivem em áreas mais pobres.
Essa é uma forma que o agricultor encontrou para retribuir o acolhimento que teve no Brasil, apesar das dificuldades. "Nós recebemos capacitação. Por que não retribuir? Eu achei uma foto antiga de uma professora que me dava atenção. Pedi pra fazerem um quadro e fiz uma surpresa".
Contei que, quando eu estava passando fome, ela dividia o prato dela comigo e me deu aulas de reforço. Ela não era nem da minha sala. Ela chorou e respondeu: 'Eu não lembro disso, tive tantos alunos'. Mas eu lembro. E hoje eu estendo a mão lembrando disso"
Aos 65, mesmo com um sotaque ainda forte, Michinori se sente em casa na Amazônia. "Se tiver farinha com açaí, para mim, é prato feito. Eu virei paraense. Vou pro interior com a minha rede e durmo com os indígenas, tomo banho de igarapé. Não tem banheiro? Vou para o mato! E aí quando falo que nós, japoneses, temos o mesmo sangue dos indígenas daqui, começam a tirar foto e comparar. Eles vieram de lá [da Ásia]. Eu tenho traços indígenas".
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