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Tim Vickery: O modelo inglês e por que ele não serve para o futebol brasileiro

08/05/2014 08h14

Eu estava em uma visita rápida a Londres quando me chegou a notícia de que o Manchester United havia demitido o técnico David Moyes. No rádio, ouvi um boletim que citava a palavra "marca" três vezes em 10 segundos e depois tratava dos efeitos da novidade no preço das ações do clube, na Bolsa de Nova York.

Esse é um futebol completamente diferente daquele com o qual cresci, apesar de toda essa mudança já estar em curso quando me mudei para o Brasil há 20 anos. Uma indústria que antes era de pouco investimento e baixo lucro transformou-se em um monstro do entretenimento global. Naquela corda bamba em que o futebol caminha entre o "negócio" e a "cultura", está claro de que lado o futebol inglês ficou.

O ponto da virada, o fundo do poço, foi certamente o desastre no estádio de Hillsborough, há 25 anos, quando 96 torcedores foram esmagados até a morte como consequência de uma operação incompetente da polícia. Nos 15 anos anteriores, os torcedores vinham causando tantos problemas de ordem pública, que a premissa básica de "controle de multidões" acabou esquecida: a mera presença de tantas pessoas em um espaço reduzido, por si só, passou a ser vista como uma ameaça para a segurança.

Naquela época, era comum ouvir que o futebol inglês estava morrendo - um ponto de vista que, se pensado hoje em dia, soa ridículo. Em vez disso, lições foram aprendidas e mudanças foram feitas - na arquitetura dos estádios, no preço dos ingressos, no comportamento e na própria cultura do torcedor. Como sempre, em um processo assim, houve perdas e ganhos.

'Ambiente asséptico'

Realmente parece haver uma relação entre "conforto" e "atmosfera" dentro dos estádios: mais do primeiro significa menos do segundo. Quando os torcedores têm de chegar ao estádio antes para garantir um bom lugar, quando eles estão amontoados um em cima do outro, é aí que criam essa atmosfera de forma espontânea. Quando todos têm um assento garantido e um acesso excelente, pode-se chegar mais tarde ao estádio, onde o telão dita o tom da ocasião.

O futebol inglês continua a proporcionar uma importante experiência de massa, um meio pelo qual a sociedade pode manter o sabor dos valores coletivos da era industrial - mas isso agora acontece em um ambiente asséptico, mais limpo.

Muitos acabaram excluídos dos estádios pelo alto preço dos ingressos. E eles foram mais do que substituídos. A média de público na Inglaterra agora é significativamente mais alta do que era no período que antecedeu esse processo de "assepsia". O público agora é mais agregador, há mais mulheres nos estádios e muitos representantes das comunidades de imigrantes pós-Segunda Guerra Mundial que tanto mudaram a cara (e a culinária) do país nas décadas recentes.

Qualquer que seja a impressão das pessoas sobre esse "processo de assepsia", na Inglaterra ele parece ter trazido mais ganhos do que perdas. Mas isso não significa que um processo similar, mas em circunstâncias diferentes, terminará com os mesmos resultados. Com a construção das caras e impressionantes arenas da Copa do Mundo no Brasil, além de outros novos estádios pelo país, o futebol brasileiro agora está dando passos na direção seguida pela Inglaterra nos últimos 25 anos. As diferenças, porém, são gritantes.

Sem cópia

Uma diferença é que o futebol inglês estava matando torcedores em escala industrial. Após Hillsborough, disseminou-se a ideia, tanto entre torcedores quanto entre autoridades, de que algo havia de mudar.

Os torcedores se uniram, começaram a fazer revistas (fanzines) onde o desejo comum era não ser tratado como gado. O bom desempenho da Inglaterra na Copa do Mundo de 1990 fez a causa ganhar o apoio de uma nova classe média. Fez ainda os torcedores mais "esquecidos" se lembrarem de valores do esporte.

A medida que os estádios foram se tornando arenas com lugares marcados e cadeiras, o futebol foi renascendo e a média de público foi aumentando. E esse "boom" rapidamente se traduziu em um espetáculo mais bonito, com grandes nomes do futebol mundial chegando para melhorar ainda mais o padrão do jogo.

Mesmo os preços poderiam subir, seguindo uma lógica de fortalecimento do esporte - o que não é a situação vista no futebol brasileiro atualmente. Do lado de cá do Atlântico, um calendário arcaico e horários de jogos feitos para a TV afastam os torcedores dos estádios.

E há ainda a questão da distribuição de renda. Se a Inglaterra se tornou uma sociedade mais desigual nas últimas décadas, pelo menos o legado da social-democracia pós-guerra impediu a criação de abismos entre as classes, tão parte da realidade brasileira. Ingressos mais caros inevitavelmente vão tirar gente do estádio. Mas no Brasil há poucas evidências de que essas pessoas possam ser substituídas - semana após semana - por consumidores mais ricos. Além disso, há pouca evidência de que a qualidade do espetáculo justifique os R$ 80 - ou os preços ainda maiores praticados por alguns clubes.

Também não há no passado recente do Brasil qualquer similaridade com as ondas de imigrantes vindas do Caribe ou da Índia que chegaram na Inglaterra. Essas pessoas relutavam, de forma justificada, em frequentar jogos de futebol na Inglaterra nos anos 1970 e 1980, já que o clima era intimidador. A presença deles nos novos estádios é uma vitória para o processo de "assepsia" - uma realidade que não corresponde com a brasileira.

Conforme tenta andar em sua própria corda bamba entre o negócio e a cultura, o futebol brasileiro precisa estar consciente de que a pura cópia de modelos estrangeiros não deve funcionar por aqui. Lições vindas de fora são importantes, mas elas precisam ser adaptadas. E estritamente em termos de negócios, aumentar o preço dos ingressos é uma atitude estúpida. Um assento não vendido é algo que não traz retorno algum.