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Lições de tolerância do skatista peruano que vibrou com medalha brasileira

Angelo Caro, skatista peruano, após apresentação em Tóquio - Dan Mullan/Getty Images
Angelo Caro, skatista peruano, após apresentação em Tóquio Imagem: Dan Mullan/Getty Images

Rubens Valente

Colunista do UOL

23/08/2021 04h00

As imagens do skatista peruano Angelo Caro, 21, vibrando com a medalha de prata do brasileiro Kelvin Hoefler nas Olimpíadas de Tóquio como se fosse sua viralizaram no Brasil.

Muitas pessoas que não acompanham esportes e muito menos skate, mas passaram a assistir às disputas nas Olimpíadas —como eu—, devem ter se espantado com o comportamento tolerante e abnegado de Caro, que foi repetido por outros competidores do skate, nas provas femininas e masculinas.

Eu queria entender qual a lógica de um esporte que parece —ao menos superficialmente para um leigo como eu— não ser de fato uma competição. Por isso falei com Angelo ao telefone, por meio da assessoria da Embaixada do Peru em Brasília. A entrevista me deu uma segunda confirmação. Ao contrário da visão estereotipada que se possa ter de um skatista, Angelo é bastante articulado na exposição de suas ideias e consciente do significado do seu gesto:

Na realidade, todos querem ganhar. Às vezes não acontece. Mas não muda nada se você celebra o sucesso de outros."

Foi o que disse Angelo, num raciocínio absolutamente lógico. O atleta que não comemora o feito do concorrente não se torna automaticamente o vencedor. Então por que não comemorar? Isso o skate parece ter ensinado a milhões de espectadores em escala global em Tóquio, que marcou a estreia do esporte como modalidade olímpica.

No caso de Kelvin, Angelo também comemorou porque já conhecia o brasileiro de várias competições, a primeira há três anos e meio, e criou com ele uma boa amizade.

"Todos que estamos competindo temos os mesmos objetivos. O Kelvin, eu conheço a sua carreira muito antes de competir com ele. Quando pude competir com ele, vi que além de ser um grande skater, é uma grande pessoa. Queremos o mesmo objetivo, queremos um bom posto, ganhar a medalha. Mas o Kelvin é uma pessoa boa, é um bom representante da América do Sul. Temos que estar contentes com seus amigos, afinal foi a sua competência [que ganhou]", disse Angelo, que acabou em quinto lugar na competição.

Kevin Hoefler em Tóquio - Dan Mullan/Getty Images - Dan Mullan/Getty Images
Brasileiro Kelvin Hoefler, medalhista olímpico. E amigo do Angelo
Imagem: Dan Mullan/Getty Images

O que o skate ensina e fomenta

Angelo reconhece o que ficou patente nas imagens da TV, o clima de camaradagem entre os competidores do skate. Ele acredita que o seu esporte "faz as pessoas serem melhores na vida".

"O que o skate ensina é o companheirismo. Em todo lugar que você vai, por exemplo, vai ter uma casa te esperando. O skate ensina a dividir, a ser amistoso."

Após a TV mostrar Angelo comemorando a medalha de Kelvin, o número dos seguidores do peruano disparou nas redes sociais. No Instagram, passou de 75 mil para 308 mil seguidores. Milhares de brasileiros agradeceram seu gesto e o incentivaram a continuar na carreira.

Angelo disse que não viu nas redes nenhuma crítica sobre o fato de ter comemorado a medalha do concorrente. Isso não significa que sua vida nas redes sociais seja tranquila, como parece não ser para nenhum habitante da Terra.

"Às vezes prefiro não abrir minhas redes sociais. Há mais pessoas boas que más, mas esse pouco mau... Há poucas coisas más, mas só de ler, já te atinge. Todos passam por isso, seja futebolista, cantor."

Indago se é possível levar, do companheirismo nas provas de skate, algum ensinamento para as redes sociais.

Creio que as pessoas deveriam ser um pouco mais empáticas com as demais. Pensem primeiro antes de escrever algo, pensem que estão tratando com uma pessoa igual a você. Fica um minuto pensando nesse mau comentário [antes de postar]. Muitas pessoas são diferentes [entre si], há pessoas que não se importam, mas há muitos outros que sim. Há que ter muito cuidado."

Angelo Caro - Red Bull Content Pool - Red Bull Content Pool
Angelo Caro, com outro tipo de diversão
Imagem: Red Bull Content Pool

Angelo diz que muitos comentários negativos surgem nas redes quando um skatista leva um tombo. Ele tenta explicar o que não parece ser óbvio para muitos: "O skate te dá muitas razões para que você seja melhor na vida. Por exemplo, eu quero fazer um truque [manobra mais arriscada]. Quantas vezes eu caio para fazer esse truque? Você vai ter muitas quedas, você vai rir, tentar, tentar, até chegar a esse objetivo. Quando eu consigo, é a maior realização, fico feliz".

O skatista nasceu na cidade de Chiclayo, localizada a cerca de 770 km da capital, Lima, e a 13 km da costa do Pacífico. Com cerca de 630 mil habitantes, a cidade tem os problemas comuns às principais metrópoles da América do Sul, como o crime e as drogas. Para Angelo, o skate ajudou "a tirá-lo das coisas erradas".

"Meu bairro era movimentado, um pouco perigoso, mas sempre tratava de ter boas amizades. O skate teve muito a ver com melhorar minha vida. Todos os dias era esporte, era só me dedicar a fazer truques, e não fazer coisas más. Felizmente o skate me livrou disso. Eu estudava no colégio, mas escapava para ir montar skate. Minha mãe depois ficou sabendo disso e me disse que os estudos eram muito importantes, mas sempre me seguiu apoiando."

Angelo promete uma hora voltar aos estudos, por enquanto quer "dar 200% do meu tempo para representar bem meu país e a comunidade do skate peruano".

No esporte, se tornou 'dono do próprio mundo'

Angelo Caro chuta o skate - Wally Skalij/Los Angeles Times via Getty Images - Wally Skalij/Los Angeles Times via Getty Images
Na falta da bola, Angelo chuta o skate em Tóquio
Imagem: Wally Skalij/Los Angeles Times via Getty Images

Foi por influência do irmão, Fabrizzio, que Angelo subiu num skate pela primeira vez por volta dos dez anos de idade. Quatro anos depois, já era premiado em campeonatos nacionais. Aos 15 anos de idade, ocupou o segundo lugar no campeonato Red Bull Skate Arcade, em Portugal. Em 2017, foi campeão Panamericano, na Colômbia. No ano passado, foi campeão nacional no Peru.

Torcedor da seleção peruana e do craque Paolo Guerrero, Angelo chegou a entrar num time infantil de futebol, mas a coisa não andou. Ele encontrou no skate uma outra perspectiva.

"Eu me interessei pelo skate porque eu era o dono do meu próprio mundo, eu que o controlava. Eu antes jogava futebol e não gostava que um técnico me dissesse o que fazer. Inclusive me dizia com insultos o que fazer. Aí no skate eu era o meu próprio técnico, dirigia meus horários, meus tempos."

No começo, como tantos skatistas da América do Sul têm falado desde o sucesso da estreia da modalidade nas Olimpíadas, Angelo percebia a discriminação com a prática do esporte.

"Às vezes estávamos num parque e os seguranças chegavam e diziam para a gente parar. Enquanto outros esportes continuavam. Nos tiravam dos lugares públicos. Sim, me senti um pouco discriminado simplesmente por ter um patinete na mão, mas acho que esse é um conceito que está mudando."

Desde que começou a montar skate, Angelo levou cerca de três anos até conseguir um patrocinador. Hoje é um atleta da Red Bull.

Angelo acredita que o primeiro passo que os gestores públicos deveriam tomar é ampliar os espaços —chamados de skate parks— para a prática do esporte, como se faz com a construção de quadras de vôlei e campos de futebol. Para Angelo, cada bairro deveria ter um skate park, o que faria multiplicar o surgimento de novos atletas.

Ao mesmo tempo, é preciso dinheiro mesmo. "No Peru, eu soube que nos últimos anos mais do que dobrou o número de crianças praticando skate, mas muitas delas ainda não têm recurso para comprar o skate, o tênis."

Ao contrário do que se possa imaginar, o skate não é um esporte exatamente barato (embora muitíssimo mais barato do que outras modalidades). Um bom skate, segundo Angelo, custa em torno de US$ 300, ou R$ 1,6 mil ao câmbio deste domingo (22). Porém, seu tempo de vida útil é curto. Angelo explica que a parte de baixo do equipamento, o rolamento, pode durar cerca de cinco meses, mas a parte de cima, de madeira, dura apenas 30 dias, em média. Um tênis apropriado, que também não tem vida longa, custa de US$ 80 a US$ 90 - de R$ 430 a 484.

"Creio que ninguém consegue montar um skate sem esses valores, todo ano. Mas somos guerreiros. Se estamos com a tábua quebrada, seguimos passeando."