As palavras o assombravam no meio da tarde. A madrasta tinha ligado da rádio onde o pai trabalhava: "Corre aqui que seu pai levou um tiro." Valerinho olhou no celular, 14h22. O pai devia estar chegando em casa por essa hora. Ligou para um colega do pai, recebeu outra informação, outra estocada no peito: "Seu pai levou uns tiros." Uns tiros, no plural. O plural queimava como uma bala em brasa. Que tiros? Quantos tiros? Que história é essa?, Valerinho se perguntou. E correu.
No carro que a rádio mandou para buscá-lo, ele sentiu no ombro o toque da funcionária. Era um toque cheio de sentido, que comunicava palavras que ela ainda não tinha coragem de dizer. "Seu pai morreu, meu filho", ela teria dito se esse fosse o momento certo. Mas existe um momento certo? A mulher não sabia e apenas tocou o ombro dele. E Valerinho começou a entender. Meu pai? Morreu?
Ele desceu do carro e cruzou as faixas amarelas da polícia, sem se atentar ao burburinho dos curiosos. Ele encontrou o Ford Ka preto do pai com as portas abertas e os vidros cravejados, refletindo o sol forte de Goiânia. E ali estava a perna do pai pendente do banco. A calça jeans azul. O tênis esportivo cinza. A meia branca bem acima do tornozelo. Valerinho sempre tirava sarro do modo como o pai usava essas meias, esse tênis, esse senso de estética. Há meia hora ele estava esperando Valério pra almoçar. Agora está olhando pro corpo dele inerte.
E foi nesse momento, enquanto desviava dos policiais e dos bombeiros e das câmeras que registravam a cena, e o seu estômago revirava e um abismo começava a se abrir dentro do peito, enquanto ele tentava tirar algum sentido daquilo tudo e tentava entender o que o pai fazia ali, daquele jeito, um corpo cheio de buracos e vazio de vida, foi nesse momento que Valerinho fez uma promessa silenciosa, uma promessa que viveria com ele pelos próximos anos assim como a lembrança do pai caído, de seu tênis esportivo, da calça jeans e das meias na canelas.
"Quem fez isso vai pagar ", ele disse a si mesmo. "Não importa quanto custe."
Uma voz sobressaiu no murmurinho. "Isso é coisa dele", Valerinho ouviu alguém dizer. "Isso é coisa do Maurício Sampaio." Maurício Sampaio, o vice-presidente do Atlético-GO, o mais antigo time de futebol da cidade. Era a primeira vez que Valério Luiz Filho ouvia aquele nome. Mas não seria a última.