Hereditário

Filho muda de carreira pra condenar os assassinos do pai, morto após criticar um diretor do Atlético-GO na TV

Adriano Wilkson e Eder Traskini Do UOL, em São Paulo e Santos (SP) Yasmin Ayumi/UOL

As palavras o assombravam no meio da tarde. A madrasta tinha ligado da rádio onde o pai trabalhava: "Corre aqui que seu pai levou um tiro." Valerinho olhou no celular, 14h22. O pai devia estar chegando em casa por essa hora. Ligou para um colega do pai, recebeu outra informação, outra estocada no peito: "Seu pai levou uns tiros." Uns tiros, no plural. O plural queimava como uma bala em brasa. Que tiros? Quantos tiros? Que história é essa?, Valerinho se perguntou. E correu.

No carro que a rádio mandou para buscá-lo, ele sentiu no ombro o toque da funcionária. Era um toque cheio de sentido, que comunicava palavras que ela ainda não tinha coragem de dizer. "Seu pai morreu, meu filho", ela teria dito se esse fosse o momento certo. Mas existe um momento certo? A mulher não sabia e apenas tocou o ombro dele. E Valerinho começou a entender. Meu pai? Morreu?

Ele desceu do carro e cruzou as faixas amarelas da polícia, sem se atentar ao burburinho dos curiosos. Ele encontrou o Ford Ka preto do pai com as portas abertas e os vidros cravejados, refletindo o sol forte de Goiânia. E ali estava a perna do pai pendente do banco. A calça jeans azul. O tênis esportivo cinza. A meia branca bem acima do tornozelo. Valerinho sempre tirava sarro do modo como o pai usava essas meias, esse tênis, esse senso de estética. Há meia hora ele estava esperando Valério pra almoçar. Agora está olhando pro corpo dele inerte.

E foi nesse momento, enquanto desviava dos policiais e dos bombeiros e das câmeras que registravam a cena, e o seu estômago revirava e um abismo começava a se abrir dentro do peito, enquanto ele tentava tirar algum sentido daquilo tudo e tentava entender o que o pai fazia ali, daquele jeito, um corpo cheio de buracos e vazio de vida, foi nesse momento que Valerinho fez uma promessa silenciosa, uma promessa que viveria com ele pelos próximos anos assim como a lembrança do pai caído, de seu tênis esportivo, da calça jeans e das meias na canelas.

"Quem fez isso vai pagar ", ele disse a si mesmo. "Não importa quanto custe."

Uma voz sobressaiu no murmurinho. "Isso é coisa dele", Valerinho ouviu alguém dizer. "Isso é coisa do Maurício Sampaio." Maurício Sampaio, o vice-presidente do Atlético-GO, o mais antigo time de futebol da cidade. Era a primeira vez que Valério Luiz Filho ouvia aquele nome. Mas não seria a última.

Maurício Sampaio nasceu em Goiânia em 1958. Quando ele tinha 12 anos seu pai começou o negócio que faria a fortuna da família. Em junho de 1970, Wilson Sampaio fundou o 1º Tabelionato de Protestos da capital goiana, um cartório que anos depois chegaria a faturar R$ 2 milhões por mês. Maurício se tornou tabelião substituto aos 24 anos e titular em 1988, após a morte do pai.

Valério Luiz nasceu em Goiânia em 1963. Antes de ele completar 12 anos, seu pai já era uma das vozes mais conhecidas de Goiás. O radialista Mané de Oliveira comandava populares programas esportivos no rádio e conseguiu para o filho o primeiro emprego em um deles.

Entre 2008 e 2013, o cartório da família Sampaio faturou R$ 129 milhões, de acordo com um relatório da Justiça goiana. Fortuna nos negócios virou sorte no jogo. Foi também em 2008 que Maurício se tornou vice-presidente do Atlético-GO e ajudou o clube a escalar a tortuosa escadaria do futebol: saiu da segunda divisão goiana e chegou à Série A do Campeonato Brasileiro.

Valério viu tudo enquanto subia na hierarquia da crônica esportiva do estado: trabalhou na produção, virou repórter, âncora e logo comentarista, um crítico indomado, um franco-atirador mirando os malfeitos do futebol, uma gárgula vigilante cuspindo fogo na cabeça dos diretores de seu clube do coração, o Atlético-GO. Em 2012, Valério estava no ar pela PUC TV quando recebeu a notícia de que Maurício Sampaio ameaçava deixar a diretoria do time, que patinava na zona do rebaixamento do Brasileiro.

"Meu amigo", disse ele ao vivo, se dirigindo à audiência, os olhos apertados, os gestos quase teatrais, "você pode ver nos filmes de aventura: quando os barcos estão enchendo de água, os ratos são os primeiros a pular fora." A alegoria verborrágica causou uma tempestade no clube. Dois dias depois, o Atlético-GO proibiu a entrada de todos os profissionais da PUC TV em suas dependências. Em uma carta assinada por Maurício Sampaio e pelo presidente Valdivino Oliveira, a direção culpava Valério pela medida e o chamava de "persona non grata". O radialista sentiu o golpe. A reação às suas palavras agora não prejudicava apenas a si mesmo, mas a seus colegas.

Dezesseis dias depois, seu peito, seus braços e seu rosto receberiam sete tiros na saída do trabalho.

"Com licença, o senhor tem um minuto para ouvir a palavra de Jeová?"

A lembrança da voz do pai fazendo aquela pergunta de porta em porta pelos bairros de Goiânia agora ressoava na cabeça de Valerinho. Valério era católico, mas quando descobriu a Verdade se entregou totalmente. E entregou a família toda. Seus filhos tiveram contato com a Verdade desde muito cedo, embora o que era certo às vezes parecesse ter sido escrito com linhas tortas.

Para os "mundanos", as Testemunhas de Jeová vivem uma vida de privações sem sentido. Não celebram o Natal, nem o Ano Novo, nem aniversários. Não cantam o hino nacional e não recebem transfusões de sangue. Não podem votar, praticar esportes de forma competitiva ou se relacionar com pessoas de fora da organização. Para Valerinho, era apenas a forma correta de viver a vida, porque assim seu pai ensinava. O menino aprendeu logo cedo os termos certos: era no Salão do Reino (na igreja) que os anciãos (os padres) transmitiam aos justos (os fiéis) o alimento espiritual (a palavra de Deus). Conforme, claro, a interpretação da Torre da Vigia (da Igreja).

Como adorava o pai, Valerinho falava como ele falava, o seguia aonde ele ia. No Salão do Reino, desenvolveu a retórica ao discursar sobre os temas propostos pelos anciãos. Lá fez amigos e lá aprendeu que um homem precisa antes de tudo trilhar um caminho de retidão moral. Mas com a adolescência, as dúvidas surgiram. E a ética da Torre, com todas as suas restrições e moralismos, deixou de fazer sentido pra ele. A Verdade do pai já não era mais a sua verdade.

A decisão não foi fácil. Valerinho precisou se afastar de todos de quem era próximo. As Testemunhas de Jeová não toleram quem abandona o culto. Mas sua angústia maior foi decepcionar o pai, que nunca aceitou inteiramente sua decisão. Anos depois, quando as longas conversas filosóficas já eram retalhos de lembrança, quando a dor de causar a frustração paterna já havia cicatrizado e quando Valerinho se viu refletindo sobre a opção religiosa do pai, ele percebeu que a morte de Valério tinha tudo a ver com a forma como ele escolheu viver sua vida.

Valerinho teve a certeza de que o pai jamais conseguiria viver se fosse impedido de falar a verdade. Seu pai não dava um passo que não fosse guiado por um imperativo categórico: contar a verdade, doa a quem doer. Sua vida pessoal era regulada assim, e também seu trabalho. Por isso, quando se perguntou por que Valério chamou de ratos os poderosos dirigentes do Atlético, seu filho entendeu que fazer o contrário não era uma opção. Essa era a verdade que Valério queria dizer; a verdade que, se pudesse, ele também escreveria. Mesmo com linhas tortas. Mesmo que isso custasse a sua vida.

O ruído cortou a noite como se um besouro tivesse entrado em curto-circuito. Tzzzzzz tzz tzzzzz. A televisão não desligou, a luz não caiu, e Valerinho não entendeu nada. Tzzzzzzz. Foi à sala de estar em busca da origem do barulho. Encontrou o pai, recém-chegado da rua, manejando um objeto que ele nunca tinha visto antes. Tzzzzz.

"É pra proteção", disse o pai, assustado, constrangido, guardando o taser na mochila. O pai não era de andar armado. Proteção contra o que, contra quem? Valerinho não sabia, e o pai também não fazia questão de explicar. O filho ignorava, mas o pai vinha sendo alvo de ameaças. As ligações assustadoras tinham se tornado tão frequentes quanto maior era a virulência de suas críticas. Muitos ouvintes gostavam de seus comentários, mas outros tantos os odiavam. Alguns telefonavam à sede da rádio e da TV para reclamar, xingar ou pedir aos donos sua cabeça.

Um dia, a secretária da TV recebeu a ligação anônima de um homem que se dizia policial militar e que anunciava sua vontade de "matar o Valério". Mais tarde, questionada por investigadores, a funcionária diria que preferiu não passar o recado adiante. Depois de enterrar o pai, enquanto tentava extrair algum sentido da tragédia, Valerinho se perguntou se naquela última semana Valério já sabia que sua cabeça estava a prêmio.

Caixas e mais caixas agora se empilhavam onde os dois tinham passado a maior parte da vida. Valerinho, a irmã e a madrasta resolveram se mudar às pressas, com medo de que os assassinos de Valério também fossem atrás de sua família. A decisão de abandonar o imóvel foi motivada por uma carta anônima enviada aos jornais da cidade, na qual se dizia que Valério tinha sido morto por um tal "Soldado Figueiredo", a mando de um dirigente do Atlético.

Aquele era um terreno novo para uma família que não estava acostumada a interagir com soldados e matadores de aluguel. O medo não paralisou o filho do morto. Valerinho tinha acabado de se formar em direito e, especialista em direito tributário, vinha prospectando clientes desde que voltara de um emprego no Recife. Agora ele sentia que teria apenas um cliente pelos próximos anos: o próprio pai, morto, o cliente que nenhum advogado gostaria de ter, mas o único cliente que naquele momento ele poderia aceitar. Como Valerinho defenderia os interesses do pai, sua memória, seu legado? Ele ainda não sabia, sabia apenas que sua arma agora não seria o taser que Valério nunca usou.

Estudou direito criminal, se tornou assistente de acusação, cobrou a celeridade da investigação policial, leu e releu as centenas de páginas do processo, denunciou suas irregularidades e ajudou o Ministério Público a levar ao banco dos réus cinco acusados. Além do soldado da PM Ademá Figuerêdo, denunciado como o atirador, teriam participado do crime Djalma da Silva, também PM, Urbano de Carvalho, que morava nas proximidades do local do crime, e um conhecido dele, Marcus Pereira, que teria fornecido a arma e a moto usadas no dia. O mandante, de acordo com a polícia e o Ministério Público, havia sido Maurício Sampaio, o vice do Atlético. Um dos ratos denunciados por Valério.

Ao ser preso, Marcus Pereira confessou sua participação e entregou os demais, mas mais tarde, diante do juiz, voltou atrás e disse que sua confissão foi obtida após ele ter apanhado da polícia. Todos os outros negam envolvimento no homicídio (veja abaixo o que suas defesas dizem). Valerinho e sua família agora aguardam o julgamento, que já foi adiado quatro vezes, e deve acontecer finalmente em dezembro.

Hoje ele pensa no estádio. O Serra Dourada lotado, 61 mil pessoas. Ele pensa no Bahia fazendo 1 a 0. E depois 2 a 0. Ele pensa no Goiás diminuindo a vantagem. E depois empatando. E no grito de gol entalado. Ele pensa no Fernandão. E, quando ele pensa no Fernandão, ele consegue ver o Fernandão matando a bola no peito. A bola sobe. O Fernandão olha pra ela. Ela desce. O Fernandão prepara a bicicleta. E atira as pernas para o ar e acerta a bola no momento certo. O tempo cessa. O burburinho para. O silêncio paira. A vida condensada em um instante. E de repente a bola está na rede. E o mundo em volta dele irrompe. E se expande num rompante. O mundo de uma criança condensado em um gol de bicicleta. Valerinho estava na arquibancada, torcendo, e nunca vai esquecer. Valério estava na cabine, comentando, e também jamais esqueceria. Se ele pudesse...

Quando Valerinho pensa nos assassinos do pai, ele lamenta não só a vida que eles interromperam, mas também as lembranças que se esfumaçaram e o tempo perdido. Ele lamenta os dez anos que consumiu fazendo coisas que ele nunca quis fazer, dez anos saindo em passeatas pela cidade pedindo justiça, dando entrevistas e cobrando as autoridades, estudando o Código Penal e os autos de um processo que nem deveriam existir, dez anos interrogando testemunhas e acusados e tentando analisar tudo do ponto de vista legal e não do ponto de vista emocional, racionalizando seu luto nos fóruns e audiências, dez anos querendo mandar algumas pessoas pro inferno, mas tendo que ser cortês, objetivo, técnico. Dez anos sendo advogado criminal só porque lhe tiraram o direito de ser filho.

Hoje ele é pai de um menino de 2 anos, que nunca vai poder brincar com os cabos dos microfones do avô, que nunca vai ouvir o avô comentando um jogo, que nunca vai ser levado pelo avô ao Serra Dourada e nunca vai sequer conhecer o avô, a não ser por fotos nos álbuns da família e vídeos no YouTube e pelas histórias que Valerinho vai contar. E qual história Valerinho vai contar?

"Não tem como ser uma história com final feliz", ele disse. "Que seja pelo menos uma história da qual ele possa se orgulhar."

Defesa de réus evitar falar

O UOL Esporte procurou os representantes dos réus Maurício Sampaio, Ademá Figuerêdo, Marcus Pereira, Urbano de Carvalho e Djalma da Silva, mas não obteve posicionamento sobre o caso.

O escritório do advogado Luiz Carlos da Silva Neto, que tem Maurício Sampaio como cliente, prometeu uma nota, mas nunca enviou. A reportagem tentou retornar contato, mas não obteve sucesso.

Rubens Alvarenga, advogado de Marcus Pereira, afirmou que não pode se manifestar sobre o caso, enquanto Thales Jayme, um dos defensores dos demais acusados, afirmou acreditar na absolvição dos réus, mas não quis falar com a reportagem.

"Agradeço sua atenção, mas o posicionamento da defesa já foi exaustivamente discutido e está nos autos. Temos a convicção que a tese absolutória será acolhida pelo Conselho de Sentença e serão todos absolvidos", disse Jayme.

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