"Recebo convite toda hora"

De quarentena, Muricy Ramalho diz porque não volta aos gramados e analisa: "Neymar pode ser melhor do mundo"

José Eduardo Martins Do UOL, em São Paulo Lucas Lima/UOL

Por conta de problemas de saúde, Muricy Ramalho teve de largar o futebol de forma abrupta. Aconteceu quando ele era técnico do Flamengo, em 2016, após parar na UTI por uma arritmia cardíaca. Era o segundo susto em pouco tempo. E tal situação forçou uma adaptação indesejada ao mundo longe dos gramados.

É o mesmo cenário que vive hoje o futebol, arrancado de centenas de técnicos e jogadores hoje por conta da pandemia do coronavírus.

Mas não é que o futebol consiga ficar muito tempo separado do técnico que foi campeão por praticamente todos os clubes por que passou. Não só ele trabalha para o SporTV, como os cartolas não conseguem riscar seu nome da lista a cada momento em que buscam por um treinador.

"Recebo convite toda hora. E quando falo para o dirigente que não quero, falam de dinheiro. A questão não é salário. Tem de entender que fui para UTI duas vezes, Tinha de escolher entre a minha vida e o futebol. Mas a toda hora recebo o convite, não tenho pretensão nenhuma de voltar".

Lucas Lima/UOL
Lucas Lima/UOL

Uma nova quarentena para Muricy

Hoje, Muricy está isolado em seu apartamento no Guarujá, no litoral de São Paulo. É um local que ele guarda no coração, sempre foi seu refúgio em tempos sem futebol. O problema é que, em tempos de pandemia, ficar longe da paixão é complicado.

"Duas coisas duras desse vírus. Ficar afastado é complicadíssimo. E não ver futebol. Antes, tinha futebol para tudo quanto é lado. E esporte. Sou ligado em esporte", conta o ex-treinador e hoje comentarista. "Estamos matando a saudade com VT dos jogos — Santos x Peñarol passou outro dia na SporTV. Lembrar de coisas boas é o que dá para passar o tempo. É chato mesmo".

Detalhe: ele era o técnico daquele Santos que seria campeão da Libertadores de 2011.

"Estou preso dentro de casa. É difícil. Estou no grupo no risco e temos de ter ainda mais cuidado", lembra. "A única coisa boa que estou com contato com a minha senhora sempre, mas o resto é difícil. Sem filhos, sem neta. Fico o dia todo na varanda, só caminho, é muito complicado não trabalhar".

Converso com ex-jogadores e está todo mundo pensando igual: é um vírus perigoso e todo mundo está abraçando a causa de ficar em casa. São pessoas do futebol que gostam de fazer exercício

Muricy Ramalho

Equipe AE/Agência Estado Equipe AE/Agência Estado

"Eu corria pelo Chicão e pelo Pedro Rocha"

Assistindo aos jogos antigos pela televisão, é inevitável fazer a pergunta: como o Muricy jogador se viraria no futebol atual? Para quem não sabe, Muricy foi um talentoso ponta de lança nos anos 1970 e 1980, com passagem importante pelo São Paulo e pelo futebol mexicano.

Meu estilo é o mesmo dos jogadores de hoje. Eu não era jogador lento, era inquieto, tinha o drible, tinha o físico também. O São Paulo tinha o Chicão e o Pedro Rocha, e eu corria para os dois. No futebol de hoje, claro que com a preparação de hoje, eu tinha chance de jogar. Até porque era competitivo, demais".

É justamente esse lado competitivo que Muricy usa para justificar seu sucesso, também, como treinador. "Eu vivi os dois lados. Como jogador, a gente tinha condições de resolver as coisas. Pegava a bola e ia muito para cima, passava e tinha condições de resolver. Como treinador, é meio terceirizado. Agora, com muito tempo para pensar, a gente pensa em jogos e títulos importantes, dos dois lados. Tenho saudade, principalmente dos títulos. É isso que marca".

José Cordeiro/AE

E quais são os títulos mais marcantes? Muricy fala sobre dois: o título da Copa Conmebol (o torneio que deu origem à atual Sul-Americana) em 1994, com o Expressinho do São Paulo, e o tricampeonato do Brasileirão com o São Paulo, entre 2006 e 2008.

"A [conquista da] Conmebol foi o começo da minha carreira. Ninguém esperava porque o São Paulo abriu mão do time profissional. O Telê me chamou e falou que era para arrumar um time de moleques. E era uma competição difícil. Entramos com a molecada e surpreendemos".

"Tenho contato com os jogadores do tricampeonato até hoje. Com a base do tricampeonato. Eles têm grupo, mas não sou de entrar muito. Participo de vez em quando. Fui no aniversário do Chulapa em Atalaia. São jogadores importantes na minha carreira. O Leandro tem camarote no Morumbi. Encontrei com Souza e Jorge Wagner, foi muito bom, um encontro de jogadores campeões".

Celso Júnior/AE

Muricy voltaria ao São Paulo. Mas não como técnico

Muricy não esconde a força de sua ligação com o São Paulo. Ele foi jogador pelo clube e iniciou a carreira como treinador no Morumbi. Quatro de suas principais conquistas foram pelo clube. E um de seus maiores feitos também: em 2013, ele assumiu o comando do time em 18º lugar no Brasileirão, com chances reais de rebaixamento.

"Era uma situação complicadíssima. O São Paulo estava em 18º lugar e se não tivéssemos uma atitude, não iríamos sair daquele buraco. O Juvenal [Juvêncio, então presidente do clube] acreditava, tanto que depois fomos vice-campeões em 2014. Mas aquele momento era o mais difícil de minhas passagens pelo São Paulo. Eu tinha feito história e depois tinha essa possibilidade de ir para a segunda divisão, mas não podia dizer não para a diretoria do São Paulo. Tive de aceitar o cargo. E o time acabou em nono", lembra Muricy.

Não é exatamente a mesma situação atual, em que o time de Fernando Diniz parece ter encontrado um caminho para o sucesso com vitórias importantes na Libertadores e no Paulistão antes da parada, mas o momento não é calmo. O São Paulo não conquista um título estadual desde 2005 — nesta sexta-feira (3 de abril) completa 15 anos da última conquista no Paulistão. Por isso tudo, Muricy voltaria ao São Paulo?

"Tenho contrato com o Grupo Globo. Se voltar, seria para ser coordenador, para ajudar nas contratações e o treinador. Quem sabe posso pensar nisso? Mas tem de ser algo mais tranquilo, nada tão intenso. Sem tantas viagens. Se for assim, podemos estudar, com certeza", responde o ex-técnico, lembrando que o clube tem eleições para presidente ainda em 2020 e essa possibilidade seria mais real para 2021.

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Diniz "foi um grande acerto da diretoria"

Muricy questiona a troca constante de treinadores nos últimos anos no São Paulo, mas agora acredita que o Tricolor está bem servido, pelo menos no banco de reservas. Segundo ele, a contratação de Fernando Diniz "foi um grande acerto da diretoria".

"Antes, [a diretoria] falhou um pouco em relação a treinadores. Trocaram demais. O Diniz oscilou um pouco, porque era normal. A pressão é gigante. A diretoria apoiou e só poderia dar no que deu agora", elogia Muricy, em relação ao bom momento do São Paulo pré-pandemia: o time vinha de vitórias por 3 a 0 sobre a LDU, pela Libertadores, e 2 a 1 contra o Santos, pelo Paulista.

"[Diniz] É interessante. É um técnico diferente de todos. Fui ao CT entrevistá-lo, vi o treinamento e vi que o trabalho é bem feito. Diretoria e torcida precisam acreditar nisso. Ele é um dos poucos com ideia e coloca em prática essa ideia. Precisa ter paciência. Não adianta querer trocar no primeiro deslize. Precisa acreditar em alguém e esse alguém é o Diniz. Tem a simpatia dos funcionários, chegou a hora de dar sequência, e a diretoria apoiou, e está de parabéns por isso".

No ano passado, a ideia sempre foi boa, mas demorava para ir ao gol. Agora, não. É um time agressivo".

Marcello Zambrana/AGIF

Pato é indolente?

"É que o Pato é sossegado. Eu sei por que fui eu que trouxe para o São Paulo. Ele é muito tranquilão, mas profissional, tem técnica refinada. Mas tem de competir mais. Com a técnica e o arranque que tem, volta a ser o jogador que sempre se esperou. No espaço curto, bate duro na bola, enxerga, é técnico. Agora, é aquela coisa: só isso não basta. Tem de querer e competir mais. No momento que ele faz isso, como já fez, tem poucos atacantes com essa técnica. Só que só técnica hoje não dá. Quando colocar na cabeça que tem de competir... E o Diniz é bom para convencer."

Ricardo Saibun/Santos FC

E o que acontece com Ganso?

"O Ganso é um pouco parecido [com o Pato]. É diferente dos outros. Sabe o que fazer com bola, mas tem algumas coisas... Eu sempre falei que ele tem de entrar na área, competir mais, mas acho que o que atrapalhou muito foram as contusões. No momento muito bom dele, no auge, ele estava muito forte, muito bem, mas essas contusões pararam ele naquele momento. É ruim isso na carreira. Mas precisa brigar mais, precisa saber que meio de campo precisa tomar bola do adversário, precisa correr mais. Tem de pôr essas coisas na cabeça. O futebol está muito competitivo."

Bruno Ulivieri/AGIF

Ceni: "Foi prematuro ir para o profissional"

"Rogério Ceni era aquele tipo de jogador que não espera. Tem jogador que espera muito para ver o que o técnico vai falar. O Rogério não: ele tomava decisões. Isso é raro, ainda mais para um goleiro. Era um cara que se preocupava com a classificação do time, um jogador diferente. É um cara perfeccionista.

Fui até Fortaleza e ele me recebeu muito bem. Vi tudo o que ele estava fazendo, as anotações. Vai ser um grande treinador. Ele é muito determinado. Claro, tem de ter o tempo. Acho que foi muito prematuro ir para o profissional, no São Paulo. Deveria ter passado na base. Teve o Cruzeiro. Mas o interessante é a ideia.

Experiência ele vai conquistar, com certeza. É um treinador que tem ideia de jogo, montou um time bem treinado, bem disciplinado. Com o foco que tem, a vontade de ganhar e quebrar recordes, vai ser um vencedor."

KAZUHIRO NOGI/AFP KAZUHIRO NOGI/AFP

Sobre Neymar: "Falta comando" no PSG

Quando o assunto vira Neymar, porém, Muricy adota um discurso mais moderado. Ele sempre foi admirador do atacante - com ele conquistou sua única Libertadores, em 2011, no Santos. Para o ex-treinador, ainda existe espaço para que o, agora, astro do PSG vire o maior jogador do mundo. Precisa, porém, de um comando forte no clube em que atua.

"Esperava que ele já tivesse chegado mais longe até. Achei que ele iria atingir a meta de ser o melhor do mundo depois do Messi. Mas teve problemas de contusão, principalmente na Copa do Mundo, e isso atrasou o processo de ser o melhor do mundo. Mas ainda está em idade boa, muito forte fisicamente, só tem de se cuidar de lesões", explica.

A série de problemas físicos, aliás, intriga Muricy. "Ele nunca entrou no departamento médico naquela época [Santos], não se machucava. Acho que a troca para o Paris não foi boa. Estive no Barcelona com ele, que me abriu as portas. Lá, tinham vários jogadores como ele. A disciplina impera. Hoje, ele é o cara, tipo o dono, no PSG", analisa.

"Tem que ter um lugar em que você é empregado. No Barcelona, ele era empregado. No PSG, você percebe que ele tem mais regalias. No Barcelona, só se ouvia falar do Neymar dentro de campo. No PSG, falam fora de campo. Falta comando de fora do clube. E isso fez mal para ele".

Faz um tempo que não falo com Neymar. Sempre que falo, mando mensagem para ele e para o pai. É um pessoal com quem tenho amizade boa. Admiro os profissionais que eles são. Falo com o Ricardo Rosa, o profissional que cuida dele [estão treinando juntos na quarentena no Rio]".

Júlio César Guimarães/UOL

Sem arrependimentos com a seleção

"Hoje, faço muitas palestras. No final, sempre abro para perguntas. A que mais fazem é se eu me arrependo de ter dito não para a seleção brasileira. E eu não me arrependo de nada. Se você me perguntar se eu tinha um sonho, eu tinha. Ir para a seleção. Tive oportunidade de ir para a Copa do Mundo de 1978 como jogador, mas tive lesão e não fui.

Como técnico, também pensava assim. Só que o sonho não pode passar por cima das coisas. Eu me apego às coisas que assino. O Fluminense queria me contratar fazia tempos. Acertei com o Fluminense, também adorei o Rio de Janeiro, e fiz contrato depois de dois anos e meio. Ainda precisa de advogado de ir para lá, mas já estava tudo fechado.

Aí veio o presidente [da CBF, Ricardo Teixeira]. Não gostei do lugar, conversamos por três horas e meia. Ele perguntou se estava tudo certo. Já achando que estava tudo certo. Falei que tinha dado a palavra para o Fluminense e esperava que ele desse uma palavra com eles. Ele falou que eu teria de resolver. Então, falei que ficaria no Flu. Não poderia dar as costas para as pessoas. Assinei compromisso com um clube que não ganhava há 26 anos. E não era assim que eu sairia. Não me arrependo."

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

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