O filho da professora

Como a desvalorização da educação no Brasil atravessa a história de Marquinhos, candidato a capitão do hexa

Marquinhos, em relato a Gabriel Carneiro Do UOL, em Paris David Ramos/FIFA via Getty Images

Minha infância era só futebol. Acho que se você está lendo esse texto, já imaginava algo assim. Mas minha família inteira sempre gostou. Meu irmão jogava bola, meus primos jogavam bola e minha avó era apaixonada por futebol. Eu falo isso e muita gente não acredita até hoje. Dona Anita.

Ela ia em todos os meus jogos pra assistir, desde molequinho. Me incentivou muito, vivia isso. Minha mãe e meu pai também fizeram tudo pra que eu lutasse e realizasse esse sonho, mas sei que isso vem de pelo menos uma geração antes. A vozinha que passou pra todos.

Mas o que eu quero aqui é falar de outra coisa: de como eu equilibrei o futebol com a escola. Minha mãe, dona Alina, é professora e dava dicas sobre a relação aluno-professor. Você pode perguntar: e daí, o que isso tem a ver com futebol? Bom, não é à toa que jogador de futebol chama técnico de professor por aqui, né?

David Ramos/FIFA via Getty Images

Dona Alina sempre me dizia que é preciso ser esperto porque professor não gosta de aluno folgado. Professor gosta de aluno atencioso. Ela me passava sempre uns truques pra que eu pudesse ser sempre admirado pelos professores e conseguir notas. Levo isso até hoje na relação com os meus treinadores.

Nunca fui daqueles meninos levados, que faziam muita bagunça. Sempre fui tranquilo, reservado, tímido. Desde moleque. Não gostava de dar trabalho em casa, muito menos na escola. Meu irmão Luan fazia mais essa parte por mim...

Nossa mãe nunca colocou na nossa cabeça que o futebol poderia representar uma pressão, um peso. Ela simplesmente nos levava para realizar nossos sonhos, nos divertir e jogar bola. Mas um dia isso mudou.

Quando a gente era criança, eu e meu irmão Luan estudávamos numa escola de alto padrão. Ganhávamos bolsa de estudos porque nossa mãe, Dona Alina, era professora desse colégio. E professor trabalha muito, sabe? Olhando minha mãe, aprendi que professor chega em casa e continua trabalhando. Precisa preparar aula, precisa corrigir prova... E ainda tem os filhos em casa.

Tem uma coisa que você não deve saber: é uma profissão instável. Minha família é a prova. De um dia pro outro, minha mãe ficou sem emprego. Não exatamente de um dia pro outro porque ela foi avisada que, no fim do ano, sairia, mas foi um baque saber que a gente sairia de um lugar em que já estávamos estabilizados, já estávamos acostumados com a rotina.

Na nossa casa, o final do mês era sempre apertado, sofrido, mesmo antes dessa demissão. Então, quando aconteceu, estava claro que a realidade ia piorar. Ia ficar ainda mais apertado. A gente achou que seria sofrido. E foi. Mas foi também um impulso em outra direção.

Foi quando eu percebi que tinha que trabalhar pra ajudar meus pais. Eu era muito novo ainda, não iria encontrar um emprego. Mas descobri onde poderia colocar o meu foco para ajudar: arrumar uma maneira de seguir estudando.

Eu sou filho de professor e sei que, se não for a mais importante, ser professor é uma das profissões mais importantes na vida de uma pessoa. É a educação, né? Talvez a gente não lembre muito bem de matérias e coisas específicas, mas é na escola onde a gente é formado e começa a conviver com outras pessoas. E o professor é peça-chave nisso tudo.

Pensando nisso, fui atrás de uma outra bolsa de estudos. E acabei recebendo justamente para jogar futebol. Foi o que me salvou. Depois desse dia, em que o futebol me deu pela primeira vez um rumo, nunca mais fui o mesmo. O futebol e minha educação foram as coisas que me fizeram chegar até aqui.

Ficamos felizes de viver um bom momento na seleção. Cheguei realizando sonhos na seleção. Agora é chegar bem na Copa do Mundo pra conquistar nosso grande objetivo."

Marquinhos, Sobre o momento da seleção antes da Copa do Mundo

Tem uma história que eu sempre me lembro quando penso nessa demissão da minha mãe. Depois que eu ganhei a nova bolsa de estudos, fui jogar um desses torneios entre escolas. O prêmio seria jogar uma final internacional. Eu nunca tinha saído da esquina de casa em São Paulo e podia realizar esse sonho tão novo. Nosso time chegou até a final e perdeu. Imagina o tamanho da frustração...

Na época, fiquei muito triste. Pô, lembro de tudo: o time chorando, triste, a molecada sem entender o que tinha acontecido. Depois, ainda tivermos de ver a foto dos meninos da outra escola conhecendo os pontos turísticos da cidade e jogando num estádio. Sabe onde era esse campeonato? Paris.

É por causa dessas coisas que eu digo que é preciso entender e saber esperar. O tempo passou e, quando eu tinha 19 anos, o maior time da França pagou 35 milhões de euros por mim. Se isso não é ironia do destino, vai ser o quê?

Depois de alguns anos eu não só conheci a Torre Eiffel, o lugar em que aqueles meninos tiraram foto quando eu criança, como desfruto sempre que posso da cidade. Hoje, Paris é onde eu moro, onde jogo os principais campeonatos do mundo, onde sou até capitão do Paris Saint-Germain, o time mais importante do país. A diferença é que desfrutei do prêmio um pouquinho mais pra frente.

Eu já realizei muitos sonhos, mas Copa do Mundo é um negócio que mexe demais comigo. A Copa de 2002, do penta, foi quando eu comecei a ter minhas lembranças de futebol. Tinha o quê? Uns sete, oito, anos de idade. Naquela época, brasileiro ia tudo ver jogo, pintava a rua, colocava as bandeirinhas de um lado pra outro da rua. Era Brasil, era Copa do Mundo e todos paravam pra assistir isso.

Eu tinha pôster daquela seleção na parede do quarto. Era do Ronaldo Fenômeno. Até me perguntaram recentemente se eu posso virar pôster na parede da criançada se o Brasil for campeão. Pô, às vezes a gente não tem noção desse contraste todo, né? Um dia você é moleque, é torcedor e está vendo os jogadores. Depois, é você que está fazendo esse papel. Você virou alguém para esses menininhos se orgulharem.

Na época, não pensava em ser um ídolo do futebol. Nunca, não tinha malícia nenhuma. Só queria ver meus ídolos. Nem queria saber o que eles faziam fora de campo, se tinham jogado bem ou não. Pô, o cara jogava bola na seleção brasileira! Ele era meu ídolo, coisa de outro mundo!

Uma coisa que sempre me perguntam é como eu explico o distanciamento do torcedor da seleção. Quando paro para pensar nesse assunto, eu lembro dessa pureza das crianças. É com elas que você pode medir o calor.

O mundo mudou desde a época que eu era moleque. Hoje, a gente vive no mundo das redes sociais você entende o que o jogador faz da vida dele, o que não faz. Esse acesso ao jogador forçou o lado bom e o lado ruim das coisas.

O lado bom é essa proximidade. O ruim é que esquecemos um pouco daquela mística de jogador de seleção que eu falei. Futebol é paixão, é amor, é a nossa infância fora da tela. É isso que quero que fique mais gravado: quero criar uma relação genuína, do jogador com a criança, de seleção com torcedor.

De nossa parte, o que temos de fazer é conseguir resultados. Jogar bem, fazer as coisas direito, trabalhar. É isso que o torcedor quer ver: jogadores fazendo o melhor e dando o máximo de si em campo. O espetáculo nem sempre virá, principalmente nesse futebol atual. As seleções são bem treinadas para dificultar o nosso jogo. Eles analisam o Brasil e treinam para isso. O que podemos sempre prometer é entrar querendo a vitória.

Eu já tenho 69 jogos com a camisa da seleção brasileira e posso dizer que nós entramos querendo a vitória em todas elas. Lembro que, quando completei 50 partidas, perguntaram qual era o mais especial. Só veio na minha cabeça o primeiro, um amistoso contra Honduras em 2013. Entrei no lugar do David Luiz, o técnico era o Felipão. Foi 5 a 0 pro Brasil.

Outro jogo muito marcante foi a final da Copa América de 2019. Tiramos a Argentina na semifinal e vencemos o Peru na final. É o jogo dessa foto aí em cima. Inesquecível também. Mas tomara que o melhor esteja por vir no Qatar. E que a torcida brasileira nos apoie muito.

Eu sei que existe a chance que eu seja o capitão da seleção na Copa e é por isso que eu penso muito sobre os assuntos antes de falar publicamente, em entrevistas ou nas redes sociais. Minhas palavras carregam um peso a mais. Dentro de um grupo, existem muitos líderes, não é só o capitão que exerce essa função. Ele é ajudado e amparado por líderes técnicos ou de vestiário.

Na seleção brasileira do Tite, não existe um capitão, mas alguns capitães. Um grupo, para ser forte e unido, precisa disso: união e lideranças. No PSG, hoje, também sou capitão, mas não sou alguém que pode fazer as coisas sozinho.

Pessoalmente, eu gosto da responsabilidade, mas não posso dizer que ambiciono ser o capitão na Copa do Mundo porque existem outros jogadores com essa função. Thiago Silva, Daniel Alves, Casemiro, Neymar, enfim.. Deixo as coisas acontecerem naturalmente.

Eu trabalho, luto e procuro merecer não só com palavras. Nos jogos em que eu for escolhido, tentarei exercer da melhor forma. Se for assim no Qatar, espero merecer. Se eu for o capitão do hexa, aí nem sei o que dizer... Mas é como sempre encarei na minha vida: passar por todas as experiências pra amadurecer e buscar a cada dia uma lição pra chegar fortificado na Copa do Mundo.

Não quero romantizar muito minha história. Quero terminar dizendo que quando olho para aqueles tempos, a palavra é orgulho por cada detalhe, por cada coisa que fiz. Desde moleque, corri atrás dos meus sonhos e objetivos. E sei que não precisei derrubar ninguém nesse caminho.

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