O buraco da pandemia

Bilheteria, sócio-torcedor e TV: Brasileirão sem público dá prejuízo que passa de R$ 550 milhões a clubes

Danilo Lavieri e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Bruna Prado/Getty Images

Com base nos boletins financeiros divulgados pela CBF, é possível saber que os 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro pagaram, até agora, quase R$ 30 milhões só para entrar em campo, em uma temporada sem público por causa da pandemia (veja o quadro abaixo). Esse valor vem dos chamados custos de operação, com segurança, arbitragem, ambulância, limpeza do estádio e outras coisas do tipo.

Não é novidade que os times gastam para jogar. Esses valores, porém, normalmente são cobertos com a arrecadação de bilheterias. Mas não é o caso de 2020/2021, em que além de gastar com o que normalmente era coberto, os clubes ainda deixaram de embolsar uma grande quantia por causa dos portões fechados. Em 2019, os clubes brasileiros, em conjunto, receberam R$ 526 milhões em receitas de bilheteria, somando todas as competições disputadas (veja mais abaixo).

O problema é que o buraco da pandemia não termina aí: há estimativas de que programas de sócio-torcedor perderam entre 50% e 65% de sua base de assinantes e também não houve vendas de produtos nos estádios, comprometendo os lucros do chamado "matchday". Para piorar o quadro, o fato de os estádios estarem vazios não aumentou o interesse pelos jogos na TV aberta, que registrou queda de audiência e levou ao comprometimento de outras receitas.

Quando isso vai parar? É uma pergunta sem resposta. Ontem (24), o Brasil passou das 250 mil mortes por covid-19. Cidades e estados têm decretado toques de recolher e até lockdown, enquanto a vacinação acontece em ritmo lento. Sem torcida e dinheiro, o futebol espera.

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Quem já está fraco sofre mais

Como em qualquer crise, os que estão menos preparados sofrem mais — isso fica evidente no ranking dos clubes que mais tiveram que gastar para sediar seus jogos. Flamengo e Fluminense lideraram a lista de prejuízo durante todo o Brasileirão porque precisam arcar com os custos de aluguel e manutenção do Maracanã, os mais altos do país. Sozinhos, eles somam quase 25% de todos os gastos de clubes brasileiros para entrar em campo.

Logo atrás estão Atlético-MG e Botafogo, que também precisam arcar com os gastos de Mineirão e Nilton Santos, respectivamente, estádios grandes e com manutenção onerosa. Não é à toa que alguns clubes estudam mudar seus mandos para estádios menores enquanto o público continuar barrado —na Espanha, por exemplo, o Real Madrid está mandando suas partidas em um estádio dentro de seu centro de treinamentos, com capacidade para seis mil pessoas.

A mesma lógica se repete para todos os impactos financeiros gerados pela pandemia. Os clubes que já estão envolvidos em grandes dívidas são os mais frágeis para lidar com as mudanças bruscas causadas pela pandemia. O diretor executivo para o mercado esportivo da consultora EY, Pedro Daniel, traça um paralelo entre os times e uma pessoa física.

Os mais vulneráveis são os que mais sofrem. Eles têm mais dificuldade em sobreviver, se prevenir, em fazer as coisas do dia a dia. Um clube de futebol é a mesma coisa. Quem está mais vulnerável, com salário atrasado, com imposto sem pagar, quando acontece uma onda como essa, vê a bola de neve crescer. É como quem vende um carro porque precisa de dinheiro para jantar. A pessoa não pode esperar pela melhor proposta. Vai vender na primeira, mesmo que não seja a mais adequada. No caso dos clubes, os ativos são os jogadores."

De acordo com dados de um estudo financeiro do Itaú BBA, os clubes de futebol do Brasil fecharam 2019 com R$ 8,093 bilhões em dívida, sendo Atlético-MG e Botafogo os ponteiros da lista, seguidos por Cruzeiro, Corinthians e Vasco. Outro número relevante para o cálculo deste prejuízo que vai além dos custos de operação é o quanto os clubes deixaram de arrecadar com bilheteria neste ano longe da torcida.

20% das receitas previstas pelos clubes foram perdidas

Ao lado dos quase R$ 30 milhões gastos com a operação dos estádios, o efeito mais aparente da pandemia para o futebol brasileiro é a falta de entradas de bilheteria. Nesse campo, a impossibilidade de embolsar mais de R$ 500 milhões assusta. Mas esses números não podem ser vistos de forma isolada num contexto em que os programas de sócio-torcedor têm relação direta com bilheteria.

O grande atrativo avaliado pelos torcedores para se associarem aos clubes é a prioridade ou a exclusividade para comprar de ingressos, embora cada programa ofereça experiências específicas. Como o torcedor não tem um ingresso para comprar na pandemia, parou de pagar a mensalidade. Essa receita, considerada mais segura do que a bilheteria direta, também acabou afetada pela pandemia. Segundo a empresa de inteligência analítica Stadiumetric, a queda da base de sócios-torcedores, considerando Série A e Série B, atinge índices entre 50% e 65%.

De acordo com o estudo financeiro do Itaú BBA, 14% das receitas dos grandes clubes brasileiros vêm de bilheteria e sócio-torcedor. A perda expressiva de 2020/2021 representa 12% a menos de faturamento em uma conta que os clubes tratam como "previsível" — ou seja, praticamente uma garantia. Somando os custos de jogo, perda de bilheteria e aumento de custo de operações financerias causadas por alteração de fluxo de caixa, a reportagem apurou que, do total esperado pelos clubes, a perda é de algo próximo de 20%. Considerando que o mercado de venda de jogadores também está fragilizado, os clubes precisam abrir negociações para pagar as contas.

Reprodução/@Mineirao

Ausência de público também fecha bares e restaurantes de estádios

Quando pensamos no prejuízo dos clubes com a falta da bilheteria, muitas vezes esquecemos de toda a economia que gira em torno da presença das pessoas nos estádios. Todos os clubes faturam com a venda de alimentos, bebidas e outros produtos dentro de suas casas, e esse é mais um fator que aumenta o buraco causado pela pandemia.

A maioria dos clubes vende o direito de exploração deste tipo de comércio e lucra com uma parcela de participação das vendas. Como mostra levantamento da Stadiumetric, há acordos que reservam até 20% sobre o valor arrecadado para o mandante.

Em uma conta rápida, considerando que cada torcedor gastaria apenas R$ 5 por jogo (tíquete médio apurado pela reportagem), isso significa R$ 1 a menos por pessoa a cada partida. Pode parecer pouco, mas, somado, isso pode representar, segundo a empresa, 3% do total de bilheteria. Só esse valor já seria o suficiente para pagar salário de vários atletas da Série A.

Divulgação/SCInternacional Divulgação/SCInternacional

E tudo isso nem é o pior

Todos esses valores somados que os clubes deixam de receber com a organização de seus jogos nem são a pior parte para a estrutura financeira das equipes, como analisou Pedro Daniel, da EY. A mudança no fluxo de pagamento por receitas de TV compromete ainda mais o pagamento das despesas rotineiras.

Segundo o especialista, o "matchday" [dia do jogo] corresponde entre 10 e 15% das receitas de um clube. O grande impacto neste caso é que a receita está perdida. Mas o efeito imediato que os times sentiram foi a reorganização do pagamento pelos seus direitos de transmissão. Como hoje a distribuição deste dinheiro respeita uma divisão que envolve número de jogos transmitidos, quantidade de assinantes do pay-per-view e desempenho esportivo, essa grana só entra na sua totalidade ao término do Brasileirão —que, nesta temporada, terminou dois meses depois do previsto.

"A maior parte dos clubes não está preparada para compensar esse problema no fluxo de caixa. A sua despesa ordinária não mudou, você continua pagando os salários dos seus atletas, mesmo que com um desconto. E não está mais recebendo aquele dinheiro que era previsto. A maior parte dos clubes não vai ter caixa para pagar porque a TV representa a maior parte das receitas e vai pagar mais tarde. E aí o time para de pagar ou se envolve em mais dívidas", explica.

Por isso, vários clubes fizeram adaptações no seu quadro de funcionários e praticamente todos cortaram em até 25% os vencimentos do elenco. Alguns se comprometeram a devolver essa quantia no futuro. O Palmeiras, por exemplo, pagou usando dinheiro de premiação da Libertadores. Já o São Paulo tem a previsão de devolver a partir de março cerca de R$ 14 milhões aos jogadores, mas, para conseguir arcar com isso, precisou parcelar ao longo de todo o ano. Ainda assim, há atrasos de salários —com atletas como Daniel Alves— que ainda estão sendo negociados.

Bruna Prado/Getty Images

Na TV, o interesse caiu

Uma previsão simples da falta de público nos estádios seria ter mais gente vendo os jogos pela TV, certo? Errado.

Dados consolidados do Ibope em São Paulo mostram interesse menor na temporada 2020/2021 em relação ao ano de 2019. Até a 37ª rodada da edição que termina hoje (25), a audiência geral foi de 21 pontos — cada ponto equivale a 214 mil lares. No ano passado a audiência foi de 23 pontos, o que representa uma queda de 8,7% nos números atuais.

Além disso, a crise financeira atingiu em cheio ao torcedor. O serviço por assinatura Premiere tinha, antes da pandemia, uma base de 1,8 milhão de assinantes. Desde o início da pandemia, perdeu 450 mil, recuperou 225 mil e trabalha hoje com uma base de 1,5 milhão de usuários.

As dificuldades financeiras dos agentes do mercado esportivo, como detentores de direitos de transmissão, causaram uma revolução no modo como o torcedor consume futebol na TV. Aconteceram rompimentos de contratos milionários (como a Libertadores, que foi da Globo para o SBT) até cortes, atrasos, retenções ou reajustes em valores de direitos diretamente pagos aos clubes. Não tem jeito, a crise é para todos.

Quando isso vai parar?

A incerteza em relação ao fim da pandemia atinge o mundo inteiro. O futebol está sendo disputado, mas essa dúvida é relevante porque o público só volta ao estádio quando o vírus estiver mais controlado. Até lá, clubes lidarão com falta de venda de produtos nos estádios, queda de arrecadação com sócio-torcedor e vários outros itens tratados nesta reportagem.

Vários deles colocaram nas suas previsões de orçamento para a temporada que está começando verba proveniente de bilheteria que não é compatível com a realidade. Continuarão, então, com graves problemas financeiros. Outros foram mais precavidos e já estão esperando a queda de receita. Mas todos se unem no desejo de que tudo volte ao normal o mais rápido possível.

Com o calendário completamente modificado por causa da pandemia, não há nem tempo para pensar em alternativas. Os jogos continuam acontecendo um atrás do outro com os portões fechados. Só assim os times poderão receber o dinheiro que vem da TV e de premiações por eventuais conquistas —receitas que sempre foram relevantes e hoje são as únicas que podem ser previstas.

Como a crise afeta o mundo inteiro, clubes internacionais também apertaram os cintos e gastam menos em contratações, outra receita muito importante dos brasileiros. Neste caso, vários atletas devem ser vendidos por preços menores do que os que seriam praticados em condições normais, pois essa é a única solução para tentar diminuir o tamanho do buraco.

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