Trenzinho de sushi

O Brasil se acostumou com barcas, mas o rodízio japonês leva o peixe rodando até você. Literalmente.

Juliana Sayuri Colaboração para o UOL, em Toyohashi (Japão) Getty Images/imagenavi

"Irashaimase", ouve-se ao pisar os pés em qualquer canto do Japão. Num domingo de junho, ao entrar no Musashimaru, um iluminado galpão que se identifica como "sushi de rotação gourmet", na cidade de Toyohashi, foi a primeira palavra que ouvi de garçons e sushimen, em coro. A expressão, que quer dizer "bem-vindo", dá o tom da casa, cuja entrada é adornada por um pequeno aquário com carpas, incluindo as raras carpas brancas, com uma marca vermelha em formato de coração na cabeça.

Musashimaru é um dos milhares de restaurantes "kaiten zushi" (que significa "sushi de esteira"), o rodízio japonês. O brasileiro se acostumou a encontrar em rodízios uma série de barcas coloridas e combinados de sushi, sashimi e que tais, trazidos por garçons vestidos a caráter muitas vezes em quantidades colossais.

No modelo japonês, a dinâmica é diferente. O rodízio japonês põe o sushi literalmente na roda, já que ele é servido em uma esteira rolante, que se estende por balcões e às vezes ziguezagueia entre as mesas. Por causa da pandemia de covid-19, as Olimpíadas de Tóquio estão vetadas a visitantes estrangeiros não credenciados. Como vivo no Japão desde 2019, fui visitar, a pedido do UOL Esporte, um rodízio de sushi local e relato a seguir um pouco dessa experiência gastronômica.

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Peixaria, fast food e sushi raiz. Tudo em um lugar só

Aberto em 2011, braço de uma companhia fundada em 1967, o Musashimaru mescla ares de peixaria (com preço das peças de peixes pendurados no alto do balcão), fast food (com bandejas pretas e pratinhos coloridos, cuja cor identifica o valor das iguarias pedidas por um tablet) e um quê de sushi raiz, visto que ali não há menu nem qualquer outra informação que não seja em japonês.

Mas dá para comer com a ajuda dos olhos. Ao redor do balcão rodavam pratos contendo plaquinhas com a foto do sushi e a indicação do preço, que varia de 120 ienes (R$ 5) o par mais simples de niguiri a 720 ienes (R$ 32) por um combinado um pouquinho diferente. Você pode pedir pelo tablet, diante do sushiman, e minutos depois recebe o pedido diretamente dele ou pelos trilhos da esteirinha.

Outros restaurantes de estilo kaiten zushi deixam duos e trios de sushis desfilando aleatoriamente na esteira e basta você "pescar" o prato que quer do carrossel, degustá-lo e deixar a louça vazia ao seu lado. No fim, os seus pratinhos são empilhados e contados, um a um analogicamente ou mediante um controle digital que calcula o total da conta — a minha, com sushis sortidos e uma cerveja zero álcool, ficou 3.102 ienes (R$ 138,15).

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Cerveja inspirou japonês a inventar a roda

Inventado no fim da década de 1950 pelo japonês Yoshiaki Shiraishi (1914-2001), que elaborou uma estrutura de polias inspirada nas esteiras de engarrafar cervejas para otimizar o atendimento e encurtar o caminho do sushi aos clientes, o kaiten zushi tem uma atmosfera mais casual que os tradicionais restaurantes japoneses de sushi. A proposta também é mais acessível e ágil, com as peças de peixes de fato rolando até você.

O primeiro boom da roda reinventada por Shiraishi ocorreu em 1970, quando o empresário abriu seu Genroku Sushi na "Osaka World Expo", a feira internacional de inovações de design, arquitetura e atividades culturais diversas.

De lá para cá, o modelo foi incorporando outros artefatos tecnológicos, como torneirinhas de água quente ao longo do balcão para o cliente preparar seu próprio chá verde na hora, tablets para realizar os pedidos, decks com raias de alta velocidade, domos com microchip para identificar os peixes que estão saindo mais ou que estão há mais tempo nos trilhos. Hoje, há diversas redes de rodízio — uma delas, a Kura Sushi, tem mais de 400 unidades no Japão, além de filiais nos Estados Unidos e Taiwan.

No Japão, o mercado de sushi movimenta cerca de 1,5 trilhão de ienes (R$ 71,5 bilhões), segundo dados de 2016 do "Food Service Industry Research Institution". Nesse filão, os rodízios respondem por mais de 40%. Aos olhos da indústria, trata-se de um case de sucesso no mundo dos negócios. Para nós, meros comensais, é uma alternativa para experimentar um rodízio de sushi a um preço acessível, embora ele seja bem diferente do modelo brasileiro.

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Sushi ocidental mescla sabor japonês com invenções americanas

Não raro, os rodízios brasileiros incluem ingredientes diferentes e invenções americanas sobrepostas ao sushi japonês, um exemplo da chamada "fusion food", como o Califórnia roll (com abacate), Filadélfia (com cream cheese) e Joy (também conhecido como Joe, Jow ou Djô, que vem coberto com cream cheese, cebolinha e salmão picado, às vezes finalizado com elementos extras como geleia de pimenta). Rodízios de sushi se popularizaram na esteira do crescente interesse pela culinária japonesa na década de 2000 no Brasil, país onde vive a maior população japonesa fora do Japão. Tornou-se uma tendência de mercado, gastronômica, cultural, fitness e afins.

Embora não seja um lugar para se esbaldar e comer "à vontade", o kaiten zushi é um modelo japonês que lembra o rodízio brasileiro, com variedade de ingredientes e a um preço mais acessível (por peça) que o modelo à la carte dos endereços mais sofisticados ou das casas especializadas tradicionais. Existem estabelecimentos com outras regras, porém: há buffets japoneses onde é possível comer "à vontade", mas de olho no relógio — em geral, você tem até 90 minutos para se servir quantas vezes quiser dos produtos disponíveis no dia a partir de 3 mil ienes (R$ 133,61).

Mas será que esse tipo de comida faz parte da "washoku", a culinária japonesa milenar que se tornou patrimônio cultural imaterial da humanidade, segundo a Unesco? Em outras palavras, será que todo sushi feito por um sushiman no Japão, seja no kaiten zushi seja em buffet, é "real oficial"?

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Sushi servido em rodízio japonês, com esteira para atender clientes

Japoneses usavam o arroz pra conservar o peixe

Segundo a chef Telma Shiraishi, do prestigiado paulistano Aizomê, embaixadora oficial da culinária japonesa desde 2019, o sushi remete a uma antiga técnica de preservação de pescados, na qual os peixes eram misturados com arroz e a fermentação permitia sua conservação por mais tempo.

"O arroz era descartado, consumindo-se então os peixes. Depois, em algumas regiões, o tempo de fermentação foi ficando mais breve e começaram a consumir o peixe com o arroz, até que o desenvolvimento das técnicas de produção de vinagre permitiu evoluir a receita, temperando-se o arroz com vinagre e consumindo com pescados e outros ingredientes", diz.

O sushi evoluiu a partir desse histórico e, atualmente, cada canto do Japão tem seu estilo e preferências quanto aos melhores ingredientes sazonais para suas versões, acrescenta a chef.

"Um bom sushi tem a ver com equilíbrio e composição. A palavra 'sushi' faz alusão ao sabor azedo do arroz. O importante é que a proporção entre o shari (arroz do sushi) e o neta (ingredientes complementares como peixe cru, frutos do mar ou outros ingredientes) estejam equilibrados", define ela.

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Para o gestor gastronômico Marcelo Fernandes, do paulistano Kinoshita (premiado com a estrela Michelin) e Kurâ Izakaya (pub inspirado nas antigas casas nipônicas de saquê), é possível encontrar bons sushis, "honestos, autênticos e acima de tudo, deliciosos", em certas esteiras de kaiten zushi. "É uma questão de priorizar a qualidade, e não a quantidade", pondera.

O jovem chef paulista Lucas Yamauchi, vencedor do Burajiru Grand Chef 2020, concurso gastronômico organizado pelo Consulado Geral do Brasil em Tóquio, concorda. "Muitas vezes, qualidade e quantidade se traduzem em propostas diferentes: se você está com pressa ou quer um rodízio para sair rolando de tanto comer, o endereço certo é um; se você quer um menu mais sofisticado, com tempo e tranquilidade, é outro", avalia ele.

O que os especialistas acham do rodízio japonês

Rubens Kato/Divulgação

Telma Shiraishi, chef do Aizomê

O kaiten zushi é bem lúdico. Ficam em áreas turísticas ou de grande circulação, para atrair um público mais jovem ou aqueles que buscam opção com fartura a um custo menor. Em geral, os japoneses preferem qualidade à quantidade. São um dos povos mais saudáveis e longevos do mundo, em grande parte graças à dieta balanceada. Uma refeição ao estilo rodízio é focada na quantidade, geralmente em detrimento da harmonia de preparações e sabores.

João Erbert/Divulgação

Marcelo Fernandes, gestor gastronômico do Kinoshita

Em 2017, eu estava viajando com um grupo de uma multinacional japonesa e optamos por um almoço mais ágil, em um sushi de esteira. Fiquei surpreso com a qualidade do arroz, muito bem temperado, os peixes perfeitamente cortados, o wasabi fresco, o gengibre no ponto, um bom shoyu [molho de soja], três tipos de saquê e cervejas especiais. A agilidade foi um plus: você se senta, escolhe o que quer, come e vai empilhando os pratinhos.

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