Os indesejáveis

Com a chegada das Olimpíadas, população de rua foi retirada de áreas centrais de Tóquio

Juliana Sayuri Colaboração para o UOL, em Tóquio Juliana Sayuri/UOL

Passava das 9 horas da manhã quando Masao Fujita abriu o jornal do dia para ver o que está acontecendo no mundo: onda de calor, covid-19 e, obviamente, as Olimpíadas. Fujita depositou o diário, um dos jornais impressos distribuídos gratuitamente nas ruas de Tóquio, no futon florido estendido no local onde mora: a calçada embaixo do viaduto da estação de trem de Shinjuku. Fica nos arredores do Estádio Nacional do Japão, local que abrigou a cerimônia de abertura da Tóquio-2020 na sexta-feira e receberá as provas de atletismo a partir da próxima sexta-feira (30).

A imagem do Japão entre os brasileiros é de um país rico, habitado por pessoas disciplinadas e onde tudo funciona. Isto é verdade, mas não conta a história toda. Existe gente em situação de rua e Fujita não era o único vivendo nas imediações do Estádio Olímpico. Ocorre que a realização dos Jogos levou a retirada dos demais. O Japão é desenvolvido e também higienista.

Concedeu prazo até 21 de julho para todos abandonarem o entorno do local que recebeu a cerimônia de abertura. Restou apenas este senhor de 74 anos, magro, calvo e que conversa num tom sereno e um tanto melancólico. Fujita vive na rua desde 2017. Onde vai, carrega duas malas, uma mochila, algumas sacolas coloridas. E o futon.

"Fiquei sem trabalho e, depois, sem ter aonde ir. Fui ficando", conta ele, que gentilmente ofereceu uma toalha amarela para que eu não me sentasse na sarjeta.

Sentei-me ao lado dele e conversamos a respeito dos assuntos do jornal: o tempo, a pandemia e as Olimpíadas. "Tudo está muito difícil", afirma ele, vestindo uma máscara cirúrgica branca que ganhou. "Cuidado com o coronavírus, né?"

Juliana Sayuri

"Obstáculos para administração da via"

O conoravírus é microscópico e traiçoeiro, tornando-se um perigo permanente. Mesma situação da política higienista de Tóquio, invisível aos olhos, mas uma ameaça constante aos que não têm um teto.

Fujita se diz temeroso em ser obrigado a sair às pressas do viaduto onde vive. Situações assim vêm ocorrendo com a população de rua nas áreas centrais da capital japonesa há bastante tempo, desde 2013.

Foi o ano do anúncio de que Tóquio seria a cidade anfitriã das Olimpíadas. De forma silenciosa, mas constante, as pessoas em situação de rua foram "convidadas" a se retirar de suas instalações improvisadas em estações, parques e viadutos.

Segundo reportagem recente do jornal japonês Asahi Shimbun, houve uma aceleração das remoções da população de rua nas vésperas das Olimpíadas. As pessoas nesta situação receberam ordens para sair da área do Estádio Olímpico antes da cerimônia de abertura das Olimpíadas. "Remova (seus pertences) até 21 de julho pois eles são obstáculos para a administração da via", dizia a nota, com a data grifada em vermelho.

Juliana Sayuri/UOL Juliana Sayuri/UOL

Quem mora na rua não recebe auxílio na pandemia...

Uma pista de moradas abandonadas pela população de rua são malas depositadas ao lado de lonas azuis que cobrem pertences deixados nos arredores da sede do governo metropolitano de Tóquio, um arranha-céu de 48 andares com duas imponentes torres inaugurado na década de 1990 no distrito de Shinjuku. Ao lado das lonas, outra pista para o motivo das remoções: banners da Tóquio-2020 ao longo das vias.

Além da exclusão simbólica da sociedade por não ter endereço fixo, a população de rua enfrenta outras dificuldades no dia a dia. Em 2020, o governo japonês concedeu um auxílio emergencial de 100 mil ienes (cerca de R$ 5 mil) por causa da pandemia. Todos os cidadãos japoneses com endereço registrado receberam o valor. Quem vive na sarjeta não tem CEP. E a fatia mais vulnerável da população ficou de mãos abanando.

Na época, foi inclusive lançada uma petição online pedindo que a Vila Olímpica, vazia com o adiamento dos jogos de 2020 para 2021, servisse de abrigo para a população de rua durante a pandemia. A ideia não vingou.

James Matsumoto/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
Homem sem-teto deitado no meio da rua em março de 2021, quando começaram as remoções

...e não pode se vacinar

Agora, a dificuldade é o acesso à vacina contra covid-19. O voucher, um documento oficial que permite a vacinação no país, é enviado pelo correio ao endereço registrado de cada japonês. No fim de abril, o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar pediu para os governos das províncias organizarem campanhas para vacinar a população de rua.

Segundo a organização não-governamental Doutores do Mundo, que conduziu um levantamento junto a 314 pessoas sem-teto de Tóquio no fim de maio, 58% gostariam de ser vacinados, mas muitos disseram que não têm mais nenhum documento de identidade, o que os deixa, mais uma vez, invisíveis.

Esta realidade surpreende boa parte dos brasileiros. Não é a imagem que se tem do Japão, a terceira potência mundial, atrás apenas de Estados Unidos e China. Mas um olhar mais aproximado coloca as coisas no lugar. Cerca de 16% da população japonesa vive abaixo da linha da pobreza no país, vivendo com até US$ 937 por mês (o equivalente a menos da metade da média salarial no Japão).

Apenas 3.824 sem-teto pelos números oficiais

Apesar de ignorados pelo governo japonês e inexistentes no imaginário brasileiro, pessoas em situação de rua são numerosas no Japão. Em 2003, quando o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar passou a realizar levantamentos, eram cerca de 25 mil no país todo. Neste ano, o número oficial caiu para 3.824.

A queda é atribuída a períodos de revitalização econômica e políticas governamentais de apoio ao longo dos anos. Os avanços são consideráveis, mas os métodos estatísticos que criam esse número recebem críticas.

Atualmente, considerável parcela da população de rua japonesa se concentra em Osaka (990), Tóquio (862) e Kanagawa (687). Mas casos de pessoas com paradeiros desconhecidos ou de trabalhadores sem-teto não são contabilizados.

Além deste problema social, o Japão tem pessoas que trabalham, mas não conseguem pagar aluguel e vão dormir em cibercafés. Nesses locais, os preços são acessíveis, existem instalações básicas de higiene e é possível alugar cabines individuais. E, principalmente, funcionam por 24 horas.

O problema é que esses cibercafés fecharam durante os períodos de maior restrição durante a pandemia. E essas pessoas que já não tinham casa acabaram sem o abrigo improvisado em que viviam.

Carl Court/Getty Images Carl Court/Getty Images

No Japão, os excluídos preservam comportamentos e hábitos de sua sociedade. Passam a noite nas ruas, mas de manhã recolhem e arrumam seus pertences para não ficar no caminho do vaivém dos pedestres das metrópoles.

Estas pessoas são lembradas como educadas e gentis, não roubam e nem pedem esmola. As sarjetas abrigam cidadão abandonados, aposentados ou que escolheram viver fora dos padrões da sociedade japonesa, que é historicamente conhecida por valorizar a dedicação ao trabalho.

"Há muitos motivos [para uma pessoa viver na rua]", diz Fujita.

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