Lixo extraordinário

Japão é o 2º maior produtor de plástico per capita do mundo e resíduo vai parar em países pobres

Juliana Sayuri Colaboração para o UOL, em Toyohashi (Japão) Carl Court/Getty Images

No alto das arquibancadas da Arena Pernambuco, eles conquistaram os holofotes pela primeira vez. Mal o juiz apitou o fim de jogo Costa do Marfim x Japão, eles retiraram os sacos azuis que adornavam os assentos e passaram a se movimentar de um lado a outro recolhendo todo o lixo encontrado no estádio. Eles, você deve se lembrar, eram os torcedores japoneses.

Era a primeira rodada da Copa de 2014 no Brasil: o Japão perdeu por 2 a 1, mas a torcida nipônica ganhou a simpatia da imprensa internacional com a atitude. "Exemplo de civilidade", foi a manchete da época. Torcedores japoneses também foram "flagrados" limpando a Arena das Dunas, em Natal, e na Arena Pantanal, em Cuiabá. Quatro anos depois, repetiram o gesto na Copa da Rússia.

Agora é a vez de os japoneses receberem um evento esportivo mundial. Jornalistas de todos os continentes estão em Tóquio e não conseguem entender o complexo sistema de descarte de lixo do país. O centro de mídia tem uma grandes lixeiras de papelão enfileiradas e embaixo de cada uma há uma legenda explicando o que deve ser depositado.

Quando está escrito garrafas plásticas, plástico e resto de comida é fácil. Mas existem lixeiras que recebem coisas "queimáveis" e "combustíveis". Os japoneses têm aula de descarte de lixo e compreendem a mensagem, os estrangeiros não. Prova de que não entenderam o que vai nestas lixeiras é que elas quase sempre estão vazias.

Limpeza, diz-se, é um elemento característico da cultura japonesa. É a premissa de não deixar nada para trás, o que implica limpar lugares por onde se passa antes de ir embora - isto é, "se nós sujamos, nós limpamos". Vale para crianças que aprendem a pegar esfregões e faxinar banheiros do colégio e, como se viu, torcedores nos estádios.

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JUAN BARRETO/JUAN BARRETO JUAN BARRETO/JUAN BARRETO

Os japoneses são os anfitriões da tumultuada Tóquio-2020 que, devido à pandemia, foi adiada para este ano. Quem visita o país pela primeira vez pode ficar impressionado com a limpeza das ruas, mesmo não tendo lixeiras nas vias. Alguém pode se perguntar: como é possível tudo estar limpo? Mas será que é tudo tão limpo assim? A respostas curta: nem tanto.

A seguir o UOL Esporte mostra que o país da Olimpíada é realmente muito limpo, mas uma parte desse lixo se transforma em gases do efeito estufa ou vai parar em países pobres vizinhos, conhecidos como "lixeiras do mundo".

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Funcionários da Agência de Auto-Defesa japonesa limpam vagão do metrô após ataque com gás sarin em Tóquio (1995)

País reduziu lixeiras na rua por medo de terrorismo

O ideal de limpeza está presente no budismo e no xintoísmo, as duas religiões que abrangem mais de 90% da população japonesa.

Nas cidades, é difícil encontrar montanhas de lixo no chão apesar da ausência de lixeiras comuns a cada esquina. Após um atentado terrorista com gás sarin no metrô de Tóquio, em 1995, o Japão passou a reduzir o número de lixeiras nos espaços públicos com medo de que as caixas fossem utilizadas para esconder bombas.

Mas às vezes a ausência de lixeiras pode provocar um tsunami de lixo. Foi o que aconteceu depois da festa de Halloween do movimentado distrito de Shibuya, um dos mais famosos do Japão, no fim 2017, quando viralizaram fotos das sarjetas da capital japonesa repletas de papéis e canudos.

Em geral, entretanto, na ausência de lixeiras, os japoneses levam o lixo consigo para descartar devidamente dentro de casa. Esse hábito tem um nome: "gomi mochikaeri".

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Calendário mostra as regras da coleta seletiva no Japão

Regras rígidas podem confundir estrangeiros

Cada tipo de lixo tem um destino e é identificado por um saco específico. Se por acaso você se distrair e esquecer uma latinha de metal entre as PETs, o lixeiro não só pode não levar o saco embora como deixar um bilhete alertando para o erro. Certos prédios têm avisos de que jogar lixo fora do lixo é ilegal e até câmeras para monitorar o que moradores estão deixando na lixeira.

Estrangeiros costumam patinar para aprender regras tão detalhadas de primeira. Um dos trechos do documentário "Nós não somos gaijin [estrangeiros]", produção especial da NHK sobre a história dos imigrantes brasileiros no Japão, destacou o trabalho de dois voluntários que se encontram diariamente às 5 horas da manhã no posto de coleta de um conjunto habitacional na cidade de Iwata (Shizuoka), para conferir se os demais moradores do condomínio separaram corretamente o lixo do dia.

"Está errado", diz Fukue Murakami, retirando um par de luvas azuis de um saco transparente que ela delicadamente revirou. "Borracha não é lixo plástico; é queimável."

  • Lixo queimável

    Papel sujo, plásticos sujos como bisnagas de ketchup e afins, fraldas, fotos, fogos de artifício usados, galhos de árvores e pedaços de madeira.

  • Lixo orgânico

    Restos de comida, crua e cozida.

  • Plásticos e PETs

    Tampinhas e rótulos de garrafas devem ser postos em um saco; garrafas, amassadas, em outro.

  • Lixo perigoso

    Como termômetros velhos, com mercúrio dentro.

  • Lixo quebrável

    Isopor, lâmpadas, pilhas, câmeras, games e eletrodomésticos pequenos.

  • Lixo enterrável

    Vidro quebrado, cerâmica lascada.

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Legumes e frutas embalados individualmente são vendidos nos mercados do Japão

Segundo maior produtor de plástico do mundo

O destino do lixo depois dessa triagem toda, porém, é o que muitas vezes é esquecido. Em especial, o de um item muito presente no arquipélago japonês: o plástico.

O Japão é o segundo maior produtor de resíduo plástico per capita do mundo, na casa de 9 milhões de toneladas por ano, atrás apenas dos Estados Unidos. Só o plástico de uso único (os que são utilizados uma vez e jogados fora, como canudinhos) ultrapassou 5 milhões de toneladas produzidas pelo país asiático, segundo o relatório Plastic Waste Makers Index de 2019.

Não é demais dizer que o plástico é onipresente no arquipélago. Nos mercados, é comum encontrar frutas como bananas embaladas avulsas ou produtos industrializados como cookies com três tipos de embalagens: uma caixa de papel, uma cápsula plástica para acomodar os biscoitos e, por fim, invólucros de plástico para cada unidade do quitute.

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Jornalista tenta viver três semanas sem plástico

Diante das críticas pelo excesso de plástico presente no cotidiano do Japão (e nos Estados Unidos, os dois países do rico G7 que não quiseram assinar o acordo para reduzir o despejo de resíduo nos mares em 2018), o produtor japonês Yuki Ikegami, da NHK, se lançou à experiência de passar três semanas sem plástico em 2019.

Ao longo de 21 dias, Ikegami tentou viver sem os mais de 500 itens de sua casa que eram feitos de plástico, incluindo escova de dentes (substituída por uma de bambu), frascos de xampu e óculos. Nos mercados, também foi a primeira vez que ele se deu conta de que tudo é embalado com plástico, dos peixes dispostos nas bandejas às hortaliças embrulhadas num filme transparente.

Só em julho de 2020 o país determinou que os mercados cobrem por sacola, para tentar reduzir a quantidade de plástico circulando — ainda assim, o valor é tão simbólico que talvez demore a encorajar uma mudança de hábitos de consumo: ao menos ¥ 1, o equivalente a 4 centavos de real.

O fio de esperança, relatou o jornalista, veio de pequenos negócios: uma peixaria, onde o sashimi de atum era vendido em uma bandeja de madeira, e uma quitanda de mais de 90 anos, que lhe embrulhou tomates num papel de jornal, dizendo que "era assim que eles faziam antigamente". "Após três semanas, produzi menos de 40 gramas de lixo plástico, uma minúscula fração na média japonesa de 1,8 kg [para o período]", escreveu o produtor.

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Lixo queimado contribui para o aquecimento global

Aí vem uma verdade inconveniente: o Japão se orgulha de dizer que recicla 85% do plástico produzido, mas esquece de mencionar que, na verdade, cerca de 56% disso é queimado para produzir energia (emitindo dióxido de carbono, o pivô do aquecimento global) e 10% é exportado, de acordo com dados de 2018 do Plastic Waste Management Institute.

Países ricos como o Japão também exportam toneladas de lixo plástico e não precisam lidar com o descarte final - o que pode ser bastante caro, principalmente se o material tiver aditivos químicos. Quem importa, por sua vez, são países pobres na Ásia, os chamados, criticamente, de "lixeiras do mundo".

E o lixo plástico que não for aproveitado ali vai parar em lixões a céu aberto ou fica ao léu, até ser carregado por vento e chuvas aos oceanos. Estima-se que cerca de 60 mil toneladas por ano vão parar nos mares.

Arquivo pessoal
Jornalista brasileira organiza mutirões para recolher lixo

Lixo não queimado vai para o oceano (e volta)

Às vezes, os oceanos trazem o lixo de volta às orlas do Japão. Foi o que notou a jornalista gaúcha Ana Paula Ramos, 29, à época instalada na cidade litorânea de Hamamatsu (Shizuoka). Caminhando pela praia, ela se surpreendeu com a quantidade de detritos plásticos e outros objetos.

Num dia de julho de 2020, Ana se sentou na areia e ficou observando as ondas, o pôr do sol e as PETs se acumulando nos arredores. Decidiu, então, improvisar: no dia seguinte, ela voltou vestindo uma blusa cinza com um tipo de cartaz colado nas costas, simples folhas A4 impressas com a frase, em português e em japonês, "Por que você também não faz?", e passou a recolher o lixo do litoral.

Depois de publicar um relato do experimento, ela passou a receber mensagens de outros brasileiros querendo participar da iniciativa, instalados em diferentes cidades japonesas, principalmente nas províncias de Shizuoka, Gunma e Aichi. Formou-se um grupo no Facebook, que hoje conta com quase mil membros e organiza mutirões em praias, portos e parques — além de milhares de pedaços de plástico, eles já recolheram objetos como pneus, telhas, uma TV e até bonecas infláveis.

'Quem foi que jogou?', eu ficava pensando. Às vezes, foi deixado por quem estava na praia mesmo, por que é produto com rótulo japonês; outras, é plástico trazido de longe, com etiqueta da China, Coreia do Sul, Vietnã. Mas não importa a origem, a questão é o destino: o lixo não deveria estar ali.

Ana Paula Ramos, brasileira que criou projeto para recolher lixo

Arquivo pessoal
Brasileiros fazem mutirão para recolher lixo de praia do Japão

Os japoneses que passam costumam cumprimentar e delicadamente dizer "obrigado" ao notar os brasileiros participando dos mutirões, conta Ana. "Ajuda a quebrar o estereótipo do estrangeiro que não sabe separar o lixo", diz a jornalista, autora do blog Japão Sem Tarjas, que viveu no arquipélago entre abril de 2014 e fevereiro de 2021.

Muitas vezes, os brasileiros recolhem dezenas de sacos de lixo no domingo, dia em que não há centros de coleta e reciclagem abertos. Aí é preciso agir como os japoneses: amarrar e armazenar os sacos no carro e levá-los para a própria casa, para no dia seguinte entregá-los no endereço correto, na expectativa de que, no fim do ciclo, o lixo não volte aos mares mais uma vez.

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