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Time fundado por filósofo criou 'treino platônico': sem bola, com narração

O Manthiqueira disputa a Série B, a Segunda Divisão do Paulista - Divulgação
O Manthiqueira disputa a Série B, a Segunda Divisão do Paulista Imagem: Divulgação

Luís Augusto Símon (Menon)

Colunista do UOL

28/05/2023 04h00

Falta um minuto para o jogo acabar. O Manthiqueira precisa fazer um gol para ser campeão. Joãozinho, ponta-esquerda driblador, entra na área. Quando o beque se aproxima, ele dobra as pernas e cai. O árbitro aponta a marca do pênalti.

Caio Ricardo, o capitão do Manthiqueira, vai até o árbitro e diz que não foi pênalti. Joãozinho confirma. O árbitro não abre mão da decisão. O pênalti vai ser cobrado. Artur Celso é o batedor. Olha para o banco de reservas e Dado Oliveira, o treinador, reforça o que foi dito durante toda a temporada.

Artur sabe o que fazer. E faz. Chuta para fora, propositalmente. O jogo acaba e o Manthiqueira perde o título.

A cena descrita acima é fictícia. Ainda não ocorreu, mas pode acontecer sim. Dado Oliveira, o treinador, existe e vencer na base da malandragem é algo expressamente vetado no "seu clube".

Sim, o clube é de Geraldo Margelo de Oliveira, o Dado, de 62 anos. Oficial da Aeronáutica da reserva e filósofo formado em 1997. Seu trabalho de conclusão de curso foi uma tese sobre Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão com obra baseada na ética.

"É preciso fazer a coisa certa quando ninguém está vendo, não é possível desejar aos outros o que não quero para mim. Não quero ganhar com gol de mão", diz Dado, trazendo para a realidade futebolística as ideias de Kant.

Dado, formado em filosofia, é a mente por trás do Manthiqueira - Divulgação - Divulgação
Dado, formado em filosofia, é a mente por trás do Manthiqueira
Imagem: Divulgação

Ele fundou o Manthiqueira em 2010 baseado nesses princípios. E a outra inspiração - não à toa o laranja é a cor do time - é o futebol holandês de 1974 e 1988. "Futebol é uma arte. Não existe time de operário. Existe arte. O jogador precisa ter liberdade para criar, não precisa de um treinador na beira do campo gritando ordens a todo momento".

Para explicar melhor os princípios do Manthiqueira, Dado criou uma cartilha. O esquema do time precisa ser o 4-3-3. O treinador deve falar pouco. É proibido simular faltas. Não pode comemorar com dancinhas, o que ele considera um desrespeito.

Nem todos os treinadores aceitam que a derrota é uma consequência e que não vale tudo para vencer. Quase nenhum, aliás. Uma exceção foi Nilmara Alves, a primeira mulher a treinar um time profissional no Brasil. Mas ela é funcionária da Prefeitura de Guaratinguetá e precisou deixar o cargo.

Para evitar discussões, Dado tomou decisão drástica. Abandonou a presidência, agora exercida por Eluíza Oliveira, sua mulher, fez curso de treinador na CBF e resolveu ele mesmo implantar seus métodos.

O Manthiqueira, atualmente na Segunda Divisão do Paulista, treina em dois períodos. Pela manhã, Dado não comparece.

"Fica a critério dos jogadores. Eles se organizam e têm toda a liberdade. Treinam em campo reduzido ou finalizações, eles definem o que estão precisando melhorar".

À tarde, Dado comanda o treinamento. Pode ser que uma parte dele seja o "treino platônico", homenagem ao filósofo Platão. "Tudo que eu penso é perfeito", é a frase de Platão usada por Dado para justificar o seu coletivo sem bola.

Sim, sem bola.

Ele divide o elenco em dois grupos, um com colete azul e outro com vermelho. Quando apita uma vez, a bola imaginária está com, digamos, Pedro do colete azul.

Ele "canta a jogada". Por exemplo, "passei para o João", e João segue o jogo, com "driblei o Joaquim e passei para Moacyr".

A jogada perfeita é interrompida quando Dado apita duas vezes e chega a vez dos coletes vermelhos jogarem. "Está comigo e passei para Manuel", diz Simão. "Já toquei para Embrião". "E eu passei para Maceió"....

"São dez minutos de muita interação e vibração. É lúdico, eles adoram. Com esse treino, eu não vou criar Falcões mesmo porque Falcão só teve um, mas te garanto que o Jonas, um ponta driblador que não gostava de passar a bola para ninguém, melhorou".

Outro ponto da cartilha é a total liberdade religiosa dos jogadores. No Manthiqueira não existem aquela Ave Maria e aquele Pai Nosso gritados a todo pulmão. "São dois minutos de silêncio em que os católicos rezam, os evangélicos oram, os umbandistas homenageiam seus orixás, nada é imposto. Depois, tem o grito de guerra e vamos para o jogo".

O Manthiqueira, Dado faz questão de explicar, não é um time de santos. Os jogadores se cobram, levam cartões amarelos e vermelhos, como todos os outros. Mas a Ética está acima de tudo.

Dado é louco. Dado é irresponsável. Dado é lunático.

Ele já escutou de tudo, desde que comprou 1,5 alqueire de terra, criou um CT com dois campos e alojamento e fundou o Manthiqueira.

"Na verdade, eu sou um sonhador. Sou um homem de coragem, que dorme bem toda a noite. A coragem de Aristóteles, que é o equilíbrio entre o medo e a falta dele".

Em 2017, o Manthiqueira subiu para a A-3. Foi o único título até agora. Mas não é o único orgulho de Dado.

"Muitos jogadores que passaram por aqui me ligam e agradecem por serem homens melhores graças à nossa filosofia. Isto vale muito para mim e para o Manthiqueira."

E, se o Manthiqueira cair? Acaba?

"Nunca vai acabar. Uma ideia não morre".