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Eliminatórias Sul-Americanas

'Brasileiros tienem miedo': como foi Argentina x Brasil na torcida deles

Torcida em San Juan na entrada da seleção argentina em campo, contra o Brasil - Igor Siqueira/UOL
Torcida em San Juan na entrada da seleção argentina em campo, contra o Brasil Imagem: Igor Siqueira/UOL

Igor Siqueira

Do UOL, em San Juan (ARG)

17/11/2021 04h00

O Estádio Bicentenário era um lugar nada indicado para brasileiros. A festa armada no interior do país, propositalmente, era para coroar a classificação da Argentina para o Qatar, preferencialmente ganhando do Brasil, o maior rival.

Ainda que o empate por 0 a 0 não tenha assegurado a vaga para a Copa do Mundo durante os 90 minutos — a confirmação veio já no vestiário, com a derrota do Chile —, o clima desse evento, em uma fase de lua de mel dos argentinos com sua seleção, foi algo tão singular quanto a realização de um clássico desse porte, contra os brasileiros, em San Juan. O UOL acompanhou o jogo na arquibancada leste, no meio da torcida argentina, como um perfeito estranho no ninho.

Bicentenário só no nome, o estádio construído em 2011 é acanhado. Há quem chame de "raiz". Com capacidade para 25 mil torcedores, três dos quatro setores têm arquibancada de cimento. Fica até absurda a comparação com a moderna e luxuosa Neo Química Arena, em São Paulo, onde a CBF marcou o confronto anterior com os argentinos — suspenso após a ação da Anvisa.

Setor leste do estádio Bicentenário, em San Juan, durante o Argentina x Brasil - Igor Siqueira/UOL - Igor Siqueira/UOL
Setor leste do estádio Bicentenário, em San Juan, durante o Argentina x Brasil
Imagem: Igor Siqueira/UOL

O Argentina x Brasil teve aperto. Muito aperto. A superlotação era nítida no setor leste e nas plateias populares atrás dos gols. Cerca de três horas antes do apito inicial, já havia um intenso vaivém de gente em busca de um lugar ou um pedaço de visão do campo. Foi como se a pandemia jamais tivesse existido, embora o comprovante de vacinação tenha sido exigido na entrada. A máscara, pelo menos, ajudou no disfarce do brasileiro que estava no ambiente.

A insanidade vista na fila para comprar ingressos, no domingo, e na chegada da Argentina, na segunda, não ficaria fora da partida, em si. A caminhada rumo aos portões do estádio parecia uma peregrinação rumo ao santuário da Defunta Correa, ícone religioso local. Uma prova que tinha mais gente do que lugar disponível é que sentar durante o intervalo foi praticamente impossível. O grau de dificuldade foi alto, inclusive, para os malabaristas de cerveja.

"Aqui não é teatro", gritou um torcedor para um amigo que estava meio reticente em abrir espaço em meio à turba para buscar uma fresta na parte de cima da arquibancada. Mas os argentinos, sim, esperavam um show. Sobretudo de Messi. A galera estava tão ansiosa que comemorou os gols do craque no aquecimento, chutando contra os próprios goleiros.

A playlist pré-jogo montada pela organização logo foi substituída pelos cânticos que saem do âmago dos argentinos. Há os clássicos, como "Décime que se siente", "Quien no salta es un inglês" e "Soy argentino, es un sentimiento, no puedo parar".

Acompanhar a massa em alguns deles, na base da hipocrisia mesmo, ajuda no disfarce de um brasileiro. Há hits contemporâneos, como "Veni, veni, canta comigo" — que é um convite para assistir a um "amigo" chamado Messi.

"Los brasileiros tienem miedo" e "A estos putos le tenemos que ganar" apareceram ainda com o gostinho de quem foi campeão da Copa América no Maracanã — campanha que catapultou Di María, De Paul e o goleiro Dibu Martínez ao posto de ídolos do grupo atual, ficando só abaixo de Messi.

Teve vaia pesada para alguns jogadores brasileiros que, assim que chegaram ao estádio, foram dar uma olhada no gramado. Teve vaia para o preparador físico Fabio Mahseredjian, que colocou as marcações do aquecimento, e para o auxiliar Matheus Bachi, primeiro a ir a campo para iniciar a atividade pré-jogo. O Hino Nacional Brasileiro foi o único som favorável à seleção visitante em San Juan. O repórter "disfarçado" cantou em pensamento.

"Não tive um insulto enquanto estive no banco de reservas", disse Tite, na coletiva pós-jogo. É porque o técnico do Brasil não estava na pele do Vini Jr, que foi o mais próximo da arquibancada leste no primeiro tempo — o banco de reservas é colado no setor oeste, com cadeiras e entradas mais caras.

Vini Jr. durante o Argentina x Brasil, pelas Eliminatórias - Igor Siqueira/UOL - Igor Siqueira/UOL
Vini Jr. durante o Argentina x Brasil, pelas Eliminatórias
Imagem: Igor Siqueira/UOL

Sem Neymar, Vinícius, inclusive, foi o principal alvo dos xingamentos e provocações durante o primeiro tempo. Sobretudo porque tentava alguns dribles — sem tanto sucesso —, perdeu chances de cara com o goleiro e ainda levou uma trombada de Romero e saiu capotando. O zagueiro argentino, inclusive, é um dos xodós dos membros atuais da Scaloneta, como é chamado o grupo do técnico Lionel Scaloni, que acumula agora 27 jogos de invencibilidade.

Mas quando Vini Jr. encaixou uma carretilha para cima do lateral-direito Molina, no segundo tempo, um dos gritos do setor leste do Bicentenário foi: "Que atrevido!". Dá para interpretar como deferência a quem ousou dar esse drible em um jogo fora de casa, em um ambiente hostil. Foi o lance máximo de entretenimento do jogo. Para o brasileiro que estava assistindo, a gargalhada reprimida moveu os órgãos internos e só foi externada por um sorriso sob a máscara.

Ver o jogo no meio da torcida argentina, no lado oposto, pode distorcer algumas percepções sobre o jogo. Uma, claro, é em relação à arbitragem. Para o setor leste, Otamendi foi um herói por levantar Raphinha depois que o meia-atacante brasileiro simulou ter sido atingido pelo braço do zagueiro. A imagem da TV, por outro lado, prova que o defensor argentino deveria ter sido expulso. Teve gente, inclusive, que não sabia que jogador era aquele pela ponta direita do Brasil. Matheus Cunha era outro desconhecido do renovado ataque de Tite. Perguntaram se era Gabigol.

O jogo muito disputado gerou tensão até o final. O chute de De Paul no primeiro tempo, defendido por Alisson, foi a jogada que mais levantou a torcida argentina. A bola de Fred no travessão, por outro lado, trouxe um "uuuuhhh" com gosto de alívio.

Ao fim das contas, o empate por 0 a 0 não inibiu os aplausos da galera. A vaga na Copa do Mundo viria instantes depois — e eles cantaram que voltarão a ser campeões "como em 86". A relação de amor com a seleção de Scaloni, ao que parece, vai durar por mais tempo. A memória desse jogo na cabeça dos torcedores de San Jua, ah, essa vai durar para sempre.