A fé na defunta

Como a maior manifestação popular da árida San Juan, palco de Argentina x Brasil, se conecta à seleção local

Igor Siqueira Em San Juan (ARG) Igor Siqueira/UOL

A imagem de uma mulher morta, vestida de vermelho e com seu bebê ainda no colo, hoje se funde com a paixão albiceleste. As histórias envolvendo a seleção da Argentina e uma quase bicentenária manifestação de fé se unem em San Juan, palco do clássico contra o Brasil, hoje, a partir das 20h30 (de Brasília), pelas Eliminatórias da Copa do Mundo.

No meio do deserto dessa província do interior, que faz fronteira com o Chile, um ponto de parada nada luxuoso e árido passou a reunir, ao longo de mais de um século, símbolos de gratidão a uma figura religiosa que nasceu do seio do povo, a Defunta Correa.

Quem nela acredita dá crédito por graças recebidas. De toda a natureza. Carros, casas, motos, casamentos, conquistas profissionais e até títulos do futebol. Pelas escadas por onde passavam, em média, antes da pandemia, cerca de 1 milhão de pessoas por ano, também andou —inclusive de joelhos— o presidente da Associação do Futebol Argentino (AFA), Claudio Tapia.

Pelas mãos dele, até a taça da Copa América já foi parar ao lado da imagem dessa mulher sobre a qual pouco se sabe, mas que é alvo de uma devoção que extrapola os limites de San Juan. Ou seja, ao menos uma vitória sobre a seleção brasileira —derrotada na final deste ano, no Maracanã— já caiu na conta da Defunta.

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A origem da crença

"Sem a Defunta, San Juan não seria San Juan", define Claudia Boente, integrante da área técnica de turismo religioso do Ministério do Turismo e Esporte da Argentina.

Na conversa com o UOL Esporte, ela detalhou como se deu a origem dessa manifestação popular em torno de uma mulher simples, que, pelos relatos passados oralmente em quase 200 anos, chamava-se Maria Deolinda Correa.

"Começou uma caminhada até a província de La Rioja com a esperança de se encontrar com seu marido, Clemente Bustos, que havia sido recrutado pelas forças para lutar às ordens de Facundo Quiroga. Era tempo de luta entre os unitários e os federais, na guerra civil argentina. Ela andou uns 60 km pelo deserto. Com a sede e o calor, ela morreu. Ela foi encontrada sob uma árvore, mas continua amamentando: esse é o milagre. Mesmo morta, amamentou o filho", disse Claudia, sobre o episódio cuja data não é certa e teria ocorrido entre 1840 e 1870.

O cenário é em Caucete, que faz parte do deserto da província de San Juan, mas em uma região afastada do atual Centro da capital de mesmo nome. Um santuário foi estabelecido na localidade de Vallecito. Quem vive ou visita San Juan, precisa percorrer cerca de 60 km, deixando para trás o cenário repleto de vinícolas que movimentam a economia local. De carro, é o mais natural. Mas há quem faça o trajeto de cavalo, em um evento já tradicional na região, bicicleta ou até a pé.

Do rito dos devotos faz parte levar uma garrafa com água, como se fosse uma tentativa de evitar novamente a morte da mulher que sucumbiu no deserto.

Não há documentação. Isso passou de boca em boca. Há muita gente que crê e outros que não creem. Foi algo que cresceu ao longo dos anos. Não houve uma explosão em um ano ou uma década. As pessoas seguem pedindo e levando os presentes.

Claudia Boente, Integrante da equipe técnica de turismo religioso do Ministério do Turismo e Esporte

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Motorista de ambulância, Felipe Francisco Pesa, de 66 anos, deixou algumas lágrimas escorrerem enquanto olhava silencioso e tocava em uma das estátuas da Defunta Correa colocadas no topo de uma colina em Vallecito.

Com uma garrafa pet nas mãos, ele caminhara pelos degraus que levam a uma casa com duas portas, para facilitar a entrada dos visitantes. Até chegar lá, Felipe passou por miniaturas de casas, placas de carro e fitas amarrada em telhados e no corrimão. Caminhou, ainda, por degraus nos quais foram fixadas pequenas placas com os nomes daqueles que tinham algo a agradecer à Defunta Correa.

"Não conhecia San Juan e muito menos o santuário. Eu sempre tive em mente vir aqui. Hoje, graças a Deus, tive a sorte de vir com minha esposa e um casal amigo. É uma experiência muito linda. Quem tem fé sabe e conhece os favores que ela fez e tem respeito por isso", relatou ele, citando que veio agradecer por estar vivo, apesar "dos problemas de saúde".

Felipe mora em Navarro, uma pequena cidade da província de Buenos Aires, e estava em Mendoza —província vizinha a San Juan— para visitar familiares. É um exemplo de como a devoção à Defunta extrapola a região que abriga o Argentina x Brasil. Segundo funcionários, o santuário tem atraído nos últimos meses cerca de 600 pessoas por fim de semana. Aos sábados e domingos, o movimento é mais intenso.

"Ela foi sepultada na localidade de Vallecito e as pessoas do lugar, assombradas pelo que contaram sobre o bebê, começaram a visitar seu túmulo e oferecer água. Isso se deu ao longo do tempo, culminando com o que hoje é a devoção popular", explica Claudia Boente.

Reprodução

Como isso envolve o futebol argentino

Presidente da AFA, Claudio Tapia é natural de San Juan. Logo, muito familiar com a devoção à Defunta Correa. Mas muito antes de chegar ao comando da entidade, ele se casou com Paola Moyano, filha de Hugo Moyano, conhecido na Argentina por ser um caminhoneiro sindicalista. Eis mais uma conexão com a Defunta Correa, já que a crença nela é muito comum entre os que passam muito tempo ao volante.

"Nas estradas argentinas, sempre se vê uma garrafa de água que é uma homenagem à Defunta", conta a especialista do Ministério do Turismo.

Depois de ser eleito presidente para comandar o futebol argentino, Tapia subiu de joelhos as escadarias do santuário em Vallecito. Na ocasião, ele levou uma das camisas da Argentina usadas por Messi e assinadas por jogadores. Quando venceu a Copa América, o dirigente retornou com a taça em mãos e também trouxe uma camisa, assinada por ele mesmo e por Di María, autor do gol do título no Maracanã.

O presidente da Federação de Futebol de San Juan, Nacif Farias, inclusive, levou uma foto de Tapia ao lado de Messi para o museu do santuário. Na imagem, a inscrição: "Protegelos, Difuntita Correa". Outra foto é do próprio Tapia abraçando o craque argentino após o título no Brasil, o primeiro da seleção principal argentina em 28 anos: na montagem, um "gracias, Difunta Correa".

As relíquias do futebol não se restringem às peças da seleção. Há camisas de vários jogadores, como Maradona, dos tempos de Boca Juniors, Marcelo Gallardo, hoje técnico do River Plate, e Oscar Ruggeri, zagueiro campeão do mundo em 1986.

A gente ia com meu pai de caminhão à Defunta Correa. Outros iam à praia e eu não conhecia o mar. Meu pai levava a garrafinha, colchões e ia fazer pedidos. Levava a garrafa de casa. Sabe o que tinha? Carros, caminhões, luvas de boxeadores, como (Carlos) Monzón e Nicolino (Locche).

Oscar Ruggeri, Ex-zagueiro da seleção argentina e comentarista, contando o que fazia nas férias e citando os dois lutadores de boxe da Argentina

Igor Siqueira/UOL Igor Siqueira/UOL
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No museu não cabe tudo

O local que passou a ser visitado ao longo dos anos é também onde a primeira capela para a Defunta Correa foi construída, por Don Flavio Zeballos, em agradecimento a um milagre concedido em 1898. O relato dá conta de que ele pediu que sua fazenda de gado fosse recuperada após uma tempestade e, com a graça alcançada, cumpriu a promessa de fazer o local de devoção.

Com tantos presentes deixados ao longo de décadas, surgiu o museu ao qual as pessoas podem visitar se pagarem 30 pesos (R$ 1,63, na cotação atual). O valor da entrada é simbólico, mas hoje é impossível quantificar o valor de todos os bens e itens levados à Defunta Correa. Parte do acervo está em Vallecito. Outros itens maiores ficam em um galpão. E há quem estude como fazer um melhor uso de tanta riqueza.

"Há um projeto a longo prazo para fomentar circuitos de bicicleta, visita guiada, ações para os caminhoneiros, para o museu. O que se está buscando é como financiar. O assunto está no Ministério de Obras Públicas, em conexão com o tema da água potável, já que é o deserto. O governo de San Juan e Pablo Pastor, presidente da Fundação Defunta Correa, estão trabalhando para organizar e dar valor a tudo o que foi doado. Estava cheio de objetos e não tinha ordem. Os setores público e privado estão trabalhando juntos", explicou Claudia Boente, do Ministério do Turismo e Esporte.

Os arredores do santuário também têm estrutura de banheiros, alguns restaurantes e muitas lojas de artigos religiosos relacionados à Defunta, como faixas para serem amarradas na escadaria e velas. Ah, e também tem camisa falsificada da seleção argentina. As diversas garrafas pet colocadas no santuário, por sua vez, são posteriormente recicladas.

Igor Siqueira/UOL Igor Siqueira/UOL

Defunta Correa não é santa

Apesar da massificação da crença na Defunta Correa e da visita de muitos católicos ao santuário em San Juan, ela não é reconhecida oficialmente pela Igreja Católica como uma santa. O tema já bateu no Vaticano, mas foi rejeitado.

"Porque não há elementos ou documentos para confirmar que existiu. Por isso, alguns consideram um mito. Por mais que tenha pessoas que digam que pediram e receberam algo, não se trata de uma santa. Não tem processo de canonização. Ela faleceu, ninguém mais viu, não há dados. Aí, a igreja não pode reconhecê-la. A realidade é que não se sabe mais nada sobre ela. A igreja não pode aceitá-la sob nenhum ponto de vista porque não sabem nem se ela existiu. Para ser santo, tem que comprovar milagres, atitudes heroicas. O processo de beatificação não lida com as palavras mito ou lenda", explica Claudia Boente, embora tenha opinião pessoal, com base na fé e nos relatos, de que Deolinda Correa existiu, sim.

Mesmo fora da lista de pessoas canonizadas, quem visita San Juan e para no meio do deserto para agradecer não está nem aí.

"É um tema totalmente burocrático. Acredito que as pessoas escolhem algo pela sua fé. Não me considero devoto, mas a respeito, admiro, como também admiro a Virgem Maria. Os anos te dão experiência. Há também um comércio e isso inclui a igreja. Mas está demonstrado que o povo tem fé e confia na Difunta Correa", afirma Felipe Pesa.

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