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Alemão - 2020/2021

O moçambicano que superou racismo para virar árbitro de futebol na Alemanha

Fatima Lacerda

Colaboração para o UOL, em Berlim

06/02/2021 04h00

Para se adaptar a uma cidade como Berlim, Abdul Pemba precisou de dois ingredientes: teimosia e foco. Nascido em Moçambique, ele jogou futebol amador em Portugal. Em 2010, tirou uma semana de férias na capital da Alemanha e decidiu se estabelecer na cidade. Tornou-se treinador e decidiu virar árbitro. Hoje, aos 43 anos, exerce a profissão no país.

Em seu canal no YouTube, Abdul oferece um tutorial de como proceder até "chegar lá". Ele produz vídeos sempre que surge um tempinho em sua agenda cheia, entre trabalho em uma empresa de calefação, atividades de jogador, treinador e juiz, além, claro, do tempo sagrado para assistir, de preferência sozinho em casa, aos jogos.

Abdul é imigrante, afrodescendente e adepto da religião muçulmana. O somatório dessas características em terreno eurocentrista faz da vida em uma cidade como Berlim um desafio diário que ele enfrenta sem abdicar da fé e da sua característica ternura.

"Em Berlim, há racismo? Há. Eu sofro isso todos os dias. São coisas que machucam mesmo, mas eu viro a cabeça, preciso seguir, se não você não vive! Você passa a vida a discutir com as pessoas, indo para tribunal, chamando a polícia e perdendo o foco. Quem é racista fica com ele. Um dia, ou ele muda ou se não quiser mudar, morrerá com a sua arrogância, Ela não te leva pro cemitério. Você terá que ser ajudado por alguém", disse, ao UOL Esporte.

O árbitro atendeu à reportagem pouco antes de usar o tempo livre que tinha para ir à mesquita. Era início de uma tarde de sábado, com temperatura por volta de zero grau. Ele vestia uma jaqueta verde abacate do Sport-Union Berlim, time amador da nona divisão. O longo cabelo estilo rastafári cobria parte de um sorriso igualmente largo e curioso.

Enquanto caminhava, contava que não se acostuma mais com o calor quando vai visitar a mãe na sua terra natal e que vai com ela à feira de manhã cedinho para fugir do calor do meio-dia.

UOL Esporte: Teve um motivo especial porque você escolheu a Alemanha pra viver?

Abdul Pemba: (Risos). Na verdade, eu não tinha planos. Eu conheci a cidade de Berlim como turista, em 2010, época em que vivia em Lisboa. Vim passar uma semana aqui e gostei. Acabei ficando. Encontrei um trabalho, comecei a jogar bola. As coisas foram fluindo.

Você gosta de viver em Berlim?

Gosto... As dificuldades que eu encontro aqui são muito mais amenas do que em outros cantos da Europa. Eu gosto da língua, apesar de ser pesado no princípio, sem família e sem amigos.

Você jogou futebol desde sempre?

Sim, lá em Moçambique. Em Portugal, eu jogava em equipes amadoras no Cascais e no time de Barreiro, cidade em que vivia e que fica entre Moita e Setúbal.

Como foi o teu encontro com o futebol em Berlim?

Eu me lembro como se fosse hoje. Eu fui ao Mauerpark (área verde de lazer no leste da cidade) e vi um lá um grupo jogando. Fui falar com eles, que me disseram: "Vem, sim! Depois de encerrada a partida, eles vieram falar comigo, em inglês, que eram estudantes universitários e que estavam disputando um campeonato. Me convidaram para participar.

Como se chamava a equipe?

Esporte Clube Bombons. Quando a equipe se desfez, havia um médico, Marc, que me convidou para fazer parte do time da Charité (complexo hospitalar em Berlim). Ele é um grande amigo até hoje! Fiquei mais dois anos com eles e ainda continuo fazendo parte do grupo do WhatsApp. Estou inscrito lá! Quando eles precisam de ajuda, falam comigo e eu vou; ou como jogador ou como árbitro. Mais tarde, fui jogar com outros amigos no time Sport Club Berlin, clube que já estava registrado na Federação (Berlinense de Futebol). Treinamos quartas e sextas-feiras, e nos fins de semana eu jogo.

Jogador, Treinador...Como afinal surgiu a vontade de ser árbitro?

Porque sempre gostei de futebol, mas também por uma coisa que aconteceu na minha infância. Na minha cidade, Pemba, houve um jogo e, não sei por quê o pessoal começou a bater no juiz, foram na casa dele e quebraram tudo. Aquilo ficou na minha cabeça. Quando cheguei no Sport Union Berlin, houve a possibilidade de me tornar árbitro. Primeiro porque eu gosto de futebol, segundo porque eu olho para todos os campeonatos do mundo eu não vejo nenhum negro ou preto. Há uma história de pretos aqui na Europa. Então, por que eu não os vejo como árbitros ou treinadores? Isso eu me questiono, todos os dias.

2017, pensei: O que eu preciso fazer para me tornar árbitro? Outro motivo é que todas as equipes registradas na Federação aqui de Berlim têm a obrigação de ter, no mínimo, um árbitro registrado.

Quanto tempo demora o curso de especialização?

No meu caso, como seu jogador e treinador, escolhi um curso de durava dois fins de semana.

Só isso? Não é pouco tempo?

Não é não. O curso é feito por profissionais, por árbitros que estão na ativa e também por alguns que já estão aposentados

Não é "só" a questão da teoria nem da prática, mas também a psicológica como lidar com situações de pressão, estresse, marcar um pênalti ou dar o cartão vermelho. São partidas em que muitos aspectos estão em jogo!

Vou lhe dar um pequeno exemplo: nos primeiros quatro jogos você não está sozinho. Um membro da Associação de Árbitros de Berlim está com você. Se for necessário mais, ele estará lá. Por exemplo, se eu tiver um jogo domingo e estiver me sentindo inseguro por se tratar de equipes agressivas, eu poderia ligar para o presidente da Associação de Árbitros, conversar com ele. E seu eu precisar de um psicólogo, ele vem também...

Como você se sentiu no primeiro dia em que você apitou um jogo?

Eu me lembro como se fosse hoje, como o jogo decorreu, mas não me lembro quais foram os times. Há pessoas que fazem o curso, apitam duas vezes e não voltam mais. É muita pressão, mas varia muito de pessoa para pessoa. Mas como sou também jogador, sei dos truques que podem fazer o árbitro cometer erros.

O que te faz mentalmente preparado para apitar um jogo?

A primeira coisa trago de casa, coisas que meus pais me ensinaram. A segunda coisa, eu sou jogador de futebol, e a terceira, eu escolhi essa profissão, e quando tu sentas e conversa com pessoas ativas muitos anos, eles me aconselham. Eu sou tolerante e muito calmo, mas também, quando vejo que há jogadores agressivos, que tentam destruir o jogo, tenho que me posicionar: 'Eu estou aqui, árbitro do jogo. Se você não está satisfeito, a rua é serventia da casa'.

Como é o procedimento de pagamento de honorários do árbitro?

Há duas maneiras de se receber o dinheiro. O que a Federação nos aconselha é que recebamos o dinheiro antes do jogo, porque, depois do jogo, eles enrolam, enrolam... Dizem que esqueceram ou inventam frases do tipo: "A pessoa que estava com o dinheiro já foi embora".

Como funciona na prática? Você vai pegar o dinheiro no escritório do clube?

Quando você chega para apitar o jogo, a primeira coisa que você tem que fazer é falar com o responsável pelo campo. Eu chego lá e digo: "Olá, eu sou o Abdul, sou o árbitro". Ou ele está com o dinheiro ou é o treinador. Se nenhum dos dois tiver, quem paga é o presidente do clube! Se mesmo depois do término do jogo eles não pagarem, você comunica imediatamente à federação, que manda o dinheiro para direto para sua conta.

As pessoas ficam surpresas ou irritadas quando veem um árbitro afrodescendente? Como são as reações?

Há jogos em que sofro pressão e discriminação também. Quando a partida começa, os torcedores falam palavrão para você. Você, quando chega, percebe a mímica do presidente ou do treinador quando notam que você e o árbitro. Você percebe que eles não estão confortáveis. É preciso ignorar esse tipo de coisas.

Qual tipo de palavrões?

"Vai para sua casa!", "Depois do jogo vá direto para o aeroporto!", também outros palavrões que não posso mencionar aqui (risos). Um colega meu, que não é afrodescendente, mas turco-alemão, teve que se esconder na cabine do juiz e chamar a polícia.

Um outro jogo que fui apitar perto da minha casa, cheguei e falei com o responsável pelo campo. Me apresentei. Ele olhou para mim, mas disse que não poderia me dar a chave da cabine para eu me trocar, alegando que lá já haviam pertences do árbitro anterior (mochila, carteira). Frente a uma situação como essa, eu tenho o direito de pegar os meus honorários, ir para a casa e informar a federação, que não tolera isso.

Uma situação dessas antes do jogo não te desestabiliza? Você não entra no campo já muito p*** da vida, doido para dar um cartão vermelho pro primeiro que te olhar atravessado?

Claro que fiquei triste, mas você tem uma missão a cumprir.

Você se vê como um juiz mais tolerante ou você já adverte logo de primeira?

Eu me considero tolerante. Me lembro de um jogo, no qual jogadores das duas equipes vieram até a mim, dizer "muito obrigado pelo jogo que você fez, porque estavas sempre com um sorriso no rosto, tornando nosso trabalho muito fácil".

Como você apitaria uma partida com um jogador como o Neymar, que é acusado de cavar faltas?

Ou você manda ele para casa tomar banho ou você deixa ele caído e segue o jogo.

Você lembra de um jogo especialmente inusitado de você atuando com juiz?

Sim. O jogo em que fui apitar na temporada 19/20, o Dérbi de Friedrichshain (bairro no leste da cidade). Tem uma história engraçada nele. Estava de meias brancas nos pés. Quando cheguei no campo e perguntei aos treinadores as cores das camisetas, uma era amarela e vermelha. Na minha mala havia as mesmas cores como árbitro, tive que pedir uma camisa emprestada ao árbitro que havia apitado um jogo antes do meu. Quando fui me trocar, também dei conta que as meias ficaram em casa. A solução foi usar meias brancas do meu clube que estavam no carro, mas as meias dos árbitros são pretas! (Risos) Normalmente, eu levo sempre três ou quatro cores diferentes de camisas, mas nesse jogo não aconteceu. Mesmo assim, neste dia fiz um bom trabalho.

E fora do campo, na Alemanha? Você já sofreu manifestações de racismo?

Eu sofro isso todos os dias, para te ser sincero. Um exemplo. Quando estava fazendo um estágio, eu e meu colega da firma em que trabalho tínhamos que ir em uma casa consertar a calefação. A senhora, quando abriu a porta, disse pro meu colega: "Você pode entrar, mas ele não".

Outro exemplo, quando eu vou ao supermercado. Se tem cinco pessoas brancas na minha frente, elas serão saudadas e cumprimentadas pelas pessoas do caixa. Quando chega a minha vez, boa tarde não existe, e sou obrigado a olhar para o monitor para ver o valor da minha conta. Eu vejo que o mundo desconhece muita coisa. As pessoas falam: o muçulmano fez aquilo, mas não é uma religião inteira, é uma pessoa!

Você já foi alvo de uma cusparada enquanto estava numa plataforma esperando o metrô. Como você reagiu?

Naquele dia eu fiquei triste, mas fazer o que? Pensei: vou para casa, ponho minha roupa na máquina e pronto, passou! Sigo a minha vida. Em Berlim, há racismo? Há. Eu sofro isso todos os dias. São coisas que machucam mesmo, mas eu viro a cabeça, preciso seguir, senão você não vive! Você passa a vida a discutir com as pessoas, indo para tribunal, chamando a polícia e perdendo o foco. Quem é racista fica com ele. Um dia, ou ele muda ou se não quiser mudar, morrerá com a sua arrogância, Ela não te leva pro cemitério. Você terá que ser ajudado por alguém.

Qual é o teu jogador favorito do futebol brasileiro?

Ronaldo, camisa 9. É puro futebol. Me lembro de assistir um jogo, já não me lembro contra quem, no qual Ronaldo estava levando pancadas, mas, mesmo assim, furava o bloqueio no meio dos jogadores: técnica, velocidade, controle de bola, precisão, tudo aquilo que uma águia tem. Ronaldo tinha. Eu tenho saudades disso.