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Por que o Real Madrid vai disputar jogo da Copa do Rei no norte da África?

Cidade do UD Melilla, adversário do Real, é um enclave espanhol no norte da África - Wikimedia Commons
Cidade do UD Melilla, adversário do Real, é um enclave espanhol no norte da África Imagem: Wikimedia Commons

Arthur Sandes

Do UOL, em São Paulo

31/10/2018 04h00

Após discussões sobre um possível jogo do Campeonato Espanhol nos Estados Unidos, nesta quarta-feira (31) o Real Madrid disputará partida da Copa do Rei na África. Desta vez não se trata de ação de marketing, mas de um capricho de sorteio e uma disputa política histórica que, combinados, obrigam o clube de futebol mais valioso do mundo a jogar um compromisso doméstico em outro continente.

A quarta fase da Copa do Rei opõe o Real Madrid ao modesto UD Melilla, clube que seria apenas mais um desconhecido do futebol espanhol não fosse por sua localização. A equipe representa a cidade autônoma de Melilha, que pertence à Espanha mas fica no norte da África, cercada pelo Marrocos.

Como o Melilla é o mandante do confronto, vai receber o poderoso clube merengue em território africano. O duelo será às 15h30 (de Brasília) no Estádio Municipal Álvarez Claro, uma das poucas atrações culturais do território de 12 km², que ainda tem um forte, um parque de diversões e um museu do automóvel (e basicamente só).

Para além de um destino curioso do Real Madrid, Melilha é um local de importância histórica para a Espanha. A exemplo da também autônoma Ceuta, a cidade é controlada pela Espanha há cerca de 400 anos. Os portos dali ofereciam proteção e postos de comércio para os navios espanhóis no Mediterrâneo, resultado da influência que o país exerceu na região durante séculos.

A visita do Real Madrid a Melilha joga luz sobre uma série de questões em relação à Espanha e suas relações internacionais. Há uma rixa intercontinental envolvendo a cidade, que também já foi palco de um momento crucial da história espanhola e atualmente simboliza a crise de refugiados que buscam um futuro na União Europeia. Tudo isso em um jogo da Copa do Rei.

Estádio de Melilha - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Estádio para 7 mil pessoas receberá o clube mais valioso do mundo na Copa do Rei
Imagem: Wikimedia Commons

Disputa com Marrocos

A história de Melilha se confunde com a do Marrocos, que ainda hoje contesta a Espanha e cobra soberania sobre a cidade que seria “parte integral” do país africano. Os europeus ignoram o apelo sob argumento de que já havia espanhóis por lá antes mesmo de o Marrocos existir como país — a região foi colonizada por Espanha e França até 1956. Em 2007, uma visita do então rei Juan Carlos ao local enfureceu os marroquinos e motivou reprimendas diplomáticas. Na ocasião, o rei marroquino Mohammad VI tratou tanto Melilha quanto Ceuta como “territórios ocupados”.

Ode ao franquismo

Melilha é a única cidade espanhola a ainda ter uma estátua pública do ex-ditador Francisco Franco. É uma homenagem contestada nos dias de hoje, naturalmente, mas os protestos dos movimentos progressistas ainda não conseguiram a derrubada do monumento. Em 1936, foi em Melilha que Franco gestou a investida nacionalista que o alçaria ao poder via Guerra Civil Espanhola. Daí em diante, foram 36 anos de autoritarismo, militarismo e perseguição a minorias até a morte do ditador em 1975. Foi durante seu governo que o Real Madrid passou de um time modesto a uma força internacional, usado inclusive como propaganda do regime.

Crise de refugiados

Imigrantes - ANGELA RIOS / AFP - ANGELA RIOS / AFP
Imagem: ANGELA RIOS / AFP
A fronteira entre Espanha e Marrocos, em Ceuta e Melilha, divide também dois continentes de realidades muitas vezes opostas. Não à toa as cidades tornaram-se destino de refugiados de todo o continente africano que buscam um novo futuro na Europa. Em 2013, no início da crise de imigração na região do Mediterrâneo, o governo espanhol resolveu reviver uma medida da década anterior e reinstalou cercas de seis metros de altura em torno das cidades autônomas. Atualmente o acesso no enclave é ferozmente controlado, e os refugiados se submetem aos piores tipos de vivência para tentar um recomeço europeu: há quem consiga cruzar a fronteira em até 500 pessoas, mas também quem não sobrevive à jornada.