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Ideia de "Alemanha aberta", que começou na Copa-06, dá passo atrás com Özil

Özil reza antes de jogo da Copa da Rússia; camisa 10 é exemplo para geração - AFP PHOTO / Jewel SAMAD
Özil reza antes de jogo da Copa da Rússia; camisa 10 é exemplo para geração Imagem: AFP PHOTO / Jewel SAMAD

Karla Torralba

Do UOL, em São Paulo

25/07/2018 04h00

A Alemanha conviveu, desde a Segunda Guerra, com uma imagem delicada perante o resto do mundo. Quando conquistou o direito de sediar a Copa do Mundo de 2006, aproveitou a ocasião histórica para mostrar outra cara para o planeta, com o futebol como pano de fundo. 

O Mundial que inaugurou a era das "fan fests" se preocupou em receber bem os turistas e mostrar um Alemanha renovada, que tinha orgulho de vestir a camisa da seleção e ostentar as cores da bandeiras. Neste processo, a presença de jogadores com origem imigrante na seleção é ingrediente importante na missão de mostrar uma Alemanha diferente: aberta, multicultural e multiétnica.

Essa imagem foi colocada em xeque nos últimos dias quando Özil, um dos maiores símbolos dessa nova Alemanha por sua origem turca, anunciou a aposentadoria da seleção alegando racismo e desrespeito.

O anúncio e sua justificativa reacenderam a discussão sobre a sonhada "nova Alemanha". Afinal, isso não era algo consolidado?

“A história da Alemanha com o holocausto faz com que sempre seja importante a capacidade de ser tolerante e ter um discurso público de abertura e integração. Özil significa um absoluto símbolo de integração da origem turca. Se ele tem de encerrar a carreira pelo racismo que ele sofreu, aí talvez o debate da integração nos círculos esteja mais atrasado. Isso vai de mão dada da subida da extrema-direita”, comentou Kai Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.

O caso de Özil reflete que o mundo do futebol não fica de fora de uma corrente que vem crescendo na Alemanha e ameaça a integração nacional. “Isso é colocado em xeque e é por isso que a Ângela Merkel tenta mostrar que é um lugar aberto. A chanceler defende muito a abertura das fronteiras e isso aumenta a crítica interna a essas políticas”, explicou Lucas Leite, professor de relações internacionais da Faap, lembrando que no segundo semestre de 2017 o partido de extrema-direita, AfD (Alternativa para a Alemanha), conquistou mais de 10% dos votos e entrou no parlamento alemão, o que não acontecia desde a Segunda Guerra Mundial.

Ozil e erdogan - AFP PHOTO / TURKISH PRESIDENTIAL PRESS OFFICE / KAYHAN OZER - AFP PHOTO / TURKISH PRESIDENTIAL PRESS OFFICE / KAYHAN OZER
Özil ao lado de Erdogan, em maio de 2018
Imagem: AFP PHOTO / TURKISH PRESIDENTIAL PRESS OFFICE / KAYHAN OZER
Como uma foto ao lado do presidente turco foi o início do fim de Özil na seleção

Antes da Copa do Mundo, Mesut Özil posou ao lado de Recep Tayyip Erdogan e tão logo a foto foi divulgada o jogador recebeu muitas críticas e xingamentos racistas como "porco turco". O político ocupa o poder na Turquia desde 2002 e é acusado de repressão contra grupos opositores a seu regime desde um golpe de Estado fracassado em julho de 2016. Ele é responsável pela prisão de milhares de pessoas. A desculpa do jogador foi de que não poderia recusar a foto com o presidente turco por seu cargo, em respeito ao país de seus pais, imigrantes da região de Gelsenkirchen.

Para Lucas Leite, a atitude de Özil é complexa. “O Erdogan mostrou nos últimos anos que não respeita os direitos humanos. Ele deveria ter pensado mais nesse sentido. É uma seleção que saiu na primeira fase e se fala que ele (Özil) usa isso [as reações sobre a foto] para justificar o futebol ruim. Ele se encontra com Erdogan e eu não acho que teria necessidade, mas é difícil julgar quem tem mesmo a ligação com a Turquia. Ele achou que seria ofensa recusar. O que é de certa forma é compreensivo, mas há os custos políticos”, explica.

O presidente da Federação Alemã, Reinhard Grindel, foi um dos críticos à atitude e é quem Özil acusa de racismo e desrespeito. “Eu fico pensando: o ministro de relações do país falou que não acha que o caso de um milionário que vive na Inglaterra seja indicativo. Eu fico pensando. Se acontece com ele, imagina com os ‘turcos normais’. O próprio presidente da federação é conhecido como um opositor do multiculturalismo”, ressalta Kenkel, relembrando o assado de Grindel como parlamentar pouco aberto à imigração,

Enquanto isso, Erdogan comemora a saída de Özil da seleção alemã. "Falei ontem [segunda] com ele. Não conseguem aceitar o fato de que tirou uma foto comigo. Apoio as afirmações de Mesut Özil. Não se pode aceitar esse tupo de atitude racista para um jovem que derramou tanto suor pelo sucesso da seleção alemã", disse o presidente, em declarações reproduzidas pelo canal CNNTürk.

O alerta das autoridades

O debate da integração nacional foi iniciado na Alemanha tão logo as pessoas começaram a se manifestar sobre a aposentadoria de Özil. Katarina Barley, ministra da Justiça, do Partido Social-Democrata, torceu o nariz. “É um sinal de alarme quando um grande jogador alemão, como Mesut Özil, não se sente mais desejado no seu país por causa de racismo nem representado pela Federação Alemã", disse por meio do Twitter.

Heiko Maas, ministro do exterior, desqualificou as acusações de racismo e desrespeito de Özil. “Eu não acredito que o caso de um multimilionário que reside e trabalha na Inglaterra diga algo sobre a integração na Alemanha”.

Ângela Merkel limitou-se a uma manifestação via porta-voz dizendo que “tem um grande apreço por Özil. Ele é um jogador que contribuiu muito para a seleção alemã”. O deputado de origem turca Cem Özdemir criticou Özil e lembrou da foto com Erdogan. "É lamentável como Özil resolveu se manifestar. Com isso, ele joga para aqueles que rejeitam nossa democracia. A foto de Özil continua sendo um erro, e sua explicação não convence”.

Merkel - Guido Bergmann/Bundesregierung-Pool via Getty Images - Guido Bergmann/Bundesregierung-Pool via Getty Images
Merkel com Özil na Copa de 2010
Imagem: Guido Bergmann/Bundesregierung-Pool via Getty Images

“Sou alemão quando vencemos, mas quando perdemos sou um imigrante”

As críticas de Özil em sua despedida foram direcionadas à Federação Alemã. O jogador cita a diferença de tratamento quando a seleção ganha e perde por sua origem turca mesmo sendo nascido na Alemanha. “Ele foi simbólico pela integração. Foi o primeiro grande jogador de qualidade que entrou na seleção e carregou a seleção de muito sucesso sendo muçulmano. Ele abria as palmas das mãos e rezava antes dos jogos, é uma imagem forte de integração”, ressaltou Kenkel.

O futebol que une foi mostrado em 2006, em 2010 e principalmente em 2014. A Alemanha que sediou a Copa de 2006 tinha como lema “o mundo hospedado por amigos” e a seleção campeã do mundo no Brasil tinha a diversidade a seu favor como: Özil (origem turca), Jerome Boateng (pai ganês), Gundogan (origem turca), Rudiger (mãe de Serra Leoa), Khedira (origem tunisiana), Miroslav Klose (nasceu na Polônia) e Lukas Podolski (nasceu na Polônia).

A agência pública de notícias Deutsche Welle publicou, durante a Copa de 2010, um artigo falando que um dos motivos dos alemães amarem sua seleção era por ser “multicultural e alegre”. “As seleções alemãs eram tidas como a encarnação de um país temível, como vilões. A imprensa mundial se mostra surpresa com o fato de a Alemanha ter se tornado tão colorida e internacional. Quase metade dos jogadores da seleção alemã tem raízes estrangeiras. Özil, Khedira, Boateng – o que é normal na seleção e já é rotina na Alemanha”, disse o texto da época.

Pogba e Mbappé - David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images - David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images
Mbappé e Pogba comemoram o título da Copa de 2018
Imagem: David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images
A multiculturalidade representada pela Bélgica e pela França

Uma campanha vitoriosa na Copa do Mundo como a da França colocou ainda mais em evidência a discussão sobre multiculturalidade dos jogadores que representam seleções europeias e até que ponto a origem imigrante é aceita.

“O Lukaku foi direto ao ponto ao dizer que enquanto ele não faz gol e não era importante era congolês, mesmo sendo belga. Depois que fez gols, ele ganha o ‘status de belga’, ‘europeu’. Essa é discussão central. O nacionalismo e a ideia de Europa multiétnica que não é verdade. Essas nações, em geral, têm carga de racismo muito grande, que não sabe como lidar com a multiculturalidade. O futebol, pelo menos, tenta construir a narrativa de se respeitar”, disse o professor Lucas Leite, que ainda cita o caso da França campeã lembrando Marine Le Pen, da extrema-direita do país, que concorreu à presidência com uma campanha contrária à imigração e mesmo assim comemorou o título da Copa.

“Le Pen foi muito criticada na França, por exemplo, porque ela falou ‘allez le bleus’, mas ela é conhecida por ser contrária a entrada de imigrantes. É uma hipocrisia. Ela até defende que as pessoas não sejam franceses se forem filhos de imigrantes. O que percebemos é que há hipocrisia ainda. Existe racismo”.

Para Kenkel, a Alemanha está um passo atrás da França quanto à abertura. “O fato de ser de origem africana não o faz menos francês, por exemplo. Eu acho que nisso a Alemanha está um passo atrás, por não ter tido as colônias, mas de migração econômica. Quando os turcos vieram a Alemanha nos anos 1950 era uma política de querer mão de obra e o governo convidou pra ir lá. Esse trabalhador se revelou um ser humano que tem família e quis ficar. O próprio fluxo é diferente e dificulta a integração. Isso cria um histórico de perguntar sobre a lealdade da pessoa ao país que, ao meu ver, é uma coisa desnecessária pra um cara que nasceu e foi criado ali”.