Lenda do rádio esportivo, José Silvério vive medo mundano: o desemprego
Três comentaristas de futebol entram numa cabine de rádio do estádio Allianz Parque, em São Paulo. De camisa social branca, terno completo risca de giz e gravata verde-bebê, eles parecem fantasiados de padrinhos do noivo.
O radialista, de camiseta despojada azul turquesa, calça jeans e tênis esportivo, recebe seus cumprimentos com um sorriso, aperta suas mãos, diz que está tudo bem. E então, Walter Casagrande Júnior, parecendo um gigante em uma cabine telefônica, se aproxima do radialista com olhar preocupado e pergunta:
“Então, Silvério, aquilo é verdade?”
Aquilo todo mundo sabe o que é. Eram duas frases publicadas no jornal "Diário de S. Paulo" e no UOL*, três linhas de texto dizendo secamente que, depois de 53 anos narrando jogos de futebol, José Silvério, um dos locutores mais queridos de São Paulo, uma lenda viva do rádio, tinha decidido finalmente se aposentar.
À notícia seguiu-se uma avalanche de comoção.
Ouvintes ligaram aflitos para a rádio e mandaram e-mails desesperados exigindo que Silvério voltasse atrás. Alguns escreveram e publicaram homenagens, relembrando narrações antigas e dizendo que sem Silvério o rádio não seria mais o mesmo. Colegas de trabalho, fãs, pessoas desconhecidas o procuraram, perguntando se aquilo era verdade.
E para todas elas, o radialista respondeu a mesma coisa. Agora, na frente de Casagrande, Caio Ribeiro e Paulo Cesar de Oliveira, os comentaristas engravatados da TV Globo, ele repete seu discurso como uma jogada ensaiada.
“Que eu vou parar, isso é óbvio”, diz ele. “Quando eu morrer, por exemplo, é claro que eu vou parar de narrar. Quando isso vai acontecer eu não sei. Mas amanhã eu posso ter um ataque. Ou posso ganhar na loteria, e aí vou sair para viajar.”
Os colegas riem da bravata, mas se apressam a tentar esclarecer as coisas. “Mas o que estava escrito era que você tinha decidido se aposentar no fim desse ano”, lembra Caio Ribeiro.
“Isso eu não sei de onde tiraram”, responde José Silvério e confirma aos amigos, como está dizendo há dias, que não, não decidiu se aposentar e não sabe quando vai fazê-lo.
Os engravatados respiram aliviados, trocam mais algumas palavras e apertam as mãos do radialista, se despedindo com um sorriso aberto.
“Você viu?”, me pergunta Silvério quando eles já estão longe. “O pessoal ficou louco com essa história.”
Mas se você nunca viveu em São Paulo ou não é ouvinte de rádio, talvez não saiba quem é José Silvério. Trata-se de um senhor de 70 anos com pouco cabelo e constituição muscular firme, voz poderosa e olhar assertivo, que há meio século habita o imaginário de ouvintes que cresceram escutando seu grito de gol.
Ao longo da carreira, ele ganhou praticamente todos os prêmios possíveis de melhor narração no Estado. Fluente como poucos, ele faz a descrição de um contra-ataque soar com a cadência de uma sinfonia. Ele mistura futebol com poesia de um jeito belo e sutil e cria imagens inesquecíveis.
Quando um atacante faz um gol driblando toda a defesa adversária, ele descreve os zagueiros vencidos como uma floresta de pernas. Quando uma bola fica quicando perto do gol, ele diz que ela está “cheia de amor, pedindo me chuta, me chuta!” e o bom atacante só pode responder também com amor e fazê-la rolar para o gol.
Quando o Corinthians encerrou um jejum de duas décadas sem títulos, ele fez um discurso emocionado no ar e disse que o clube é “o canto de um povo que canta com a alma na garganta”.
Quando ele recebe um elogio no ar, quando um ouvinte deixa saber que só está com o rádio ligado por causa de sua narração, ele sorri orgulhoso com a certeza de que ninguém está vendo e logo segue em frente e anuncia um lateral, um chute pra fora ou um cartão amarelo, porque a narração, como o show, precisa continuar.
Mas agora, no início da sétima década de sua vida, tendo conquistado tudo o que um locutor esportivo pode sonhar, José Silvério está com o coração apertado porque seu contrato com a rádio acaba no fim do ano e ele não sabe o que o futuro lhe reserva.
O radialista entra no elevador do Allianz Parque e começa a conversar com uma mulher sobre o único assunto possível em um elevador.
“Acho que vai ter chuva hoje, hein?”, diz ele. “Minha mulher me obrigou a sair de casa de agasalho. Velho não pode pegar chuva.”
Quando chegamos ao sexto andar, dedicado a transmissões de rádio e TV, agarro dois copos de água mineral e pergunto se ele quer também. José Silvério nega. “Não bebo água daqui.”
“Tenho minhas manias”, esclarece, entrando na cabine da rádio Bandeirantes.
Um dia, o atacante Edmundo não gostou de uma crítica feita no ar e disse que alguns radialistas falavam mal dele e depois ficavam tomando suquinho da Parmalat oferecido pelo Palmeiras. José Silvério, então, decidiu nunca, jamais, aceitar nada dos clubes nos quais trabalha. Nem água.
Na cabine, ele tira da mochila de couro seu equipamento: um fone de ouvido importado de 400 dólares que ganhou da esposa, um cronômetro branco que exibe em sua tela cinza números garrafais, folhas de papel com textos dos anúncios publicitários que ele precisará repetir oito vezes durante a transmissão e um recorte de jornal com a escalação dos times.
Uma enorme mesa de som pilotada por um técnico toca Ulisses Costa, o número 2 da rádio, narrando Cerro Porteño x Corinthians. O time paulista sai na frente, toma o empate, depois a virada, e tem um pênalti nos últimos minutos de um jogo que parece muito emocionante, mas José Silvério não dá muita bola.
Quando o juiz apitar o final da partida, o Palmeiras entrará em campo e será sua a voz a entrar no ar.
Silvério chama os repórteres que o acompanharão nesta jornada, localizados em outro ponto do estádio, e pede a escalação das duas equipes.
Ele escuta cada nome, cada número, os repete para confirmar, e anota os times em uma folha de papel A4. Quando eles chegam ao 14 do Nacional, um atleta chamado Porras, o radialista interrompe seu colega.
“Esse aí não, esse nome não dá”, diz ele. “Esse cara não tem outro nome?”
Gonzalo Porras é a graça completa do meio-campista uruguaio, e Silvério anota apenas Gonçalo em sua lista e segue em frente. “O brasileiro não tem maturidade para ouvir um Porras. Não dá pra falar isso, vira piada, e eu não vou avacalhar isso aqui.”
Antes das dez da noite, o radialista se empertiga na cadeira, cruza os braços, aperta o fone nas orelhas e escuta seu amigo Milton Neves, do outro lado da cidade, anunciar para centenas de milhares de ouvintes espalhados no país inteiro e além:
“Depois de Ulisses Costa, vem aí o pai do gol, José Silvério!”
Uma vinheta empolgada diz outra vez o nome do narrador. E então ele fecha os olhos, faz o sinal da cruz, aperta um botão no microfone e diz:
“Alô, ouvintes do Brasil! Cheguei! Estou aqui na Arena Palmeiras.”
Ele diz isso de um jeito épico, emocionante, como se em vez de um estádio de futebol, ele estivesse acabado de chegar a Marte a bordo de uma nave espacial ou a Troia, dentro de um cavalo de madeira.
Mas tem alguma coisa errada, logo se percebe. A cada frase narrada, José Silvério desliga o microfone e tosse, pigarreando forte. Sua voz parece debilitada. “Isso não é normal”, confessa o radialista fora do ar.
Ele segue em frente, confiando no aquecimento de suas cordas vocais, mas parece nervoso: desarruma e arruma os papeis em sua mesa, cruza os braços e os descruza, mas não tira os olhos do campo, onde os jogadores se enfileiram para o hino nacional.
Acontece que José Silvério está fazendo isso há mais de meio século e sabe que tudo sempre (ou quase sempre) dá certo no final. E então, natural como a luz do sol, sua voz volta a deslizar macia, os pigarros cessam e José Silvério para de se mexer na cadeira, tranquilo.
E o Palmeiras faz a bola rolar no gramado do Allianz. E eu descubro o que faz os ouvintes amarem José Silvério. É que ele é capaz de fazer o lance mais banal – um chute pra fora – parecer um feito heroico – uma lança cravada no peito de um soldado. E todo mundo adora histórias de heróis.
“Afaaaaasta, desviiiiia, tiiiiira o zagueiro!”, informa ele, sacando a voz do fundo da garganta quando a defesa palmeirense impede a aproximação estrangeira.
“Em tudo que eu falo não há mentira nenhuma”, me explica no intervalo do jogo, um jogo que ele mesmo tinha considerado muito chato. “Mas é meu trabalho fazer a coisa parecer mais interessante, senão quem vai querer ficar ouvindo um jogo chato?”
O Palmeiras perdeu por 2 a 1, e eu ganhei o imenso privilégio de presenciar José Silvério gritando gol três vezes ao meu lado. Os três gols ele anunciou com a mesma força, com a mesma empolgação, seu rosto tremendo como uma bomba prestes a explodir, se tingindo de vermelho.
Mesmo tendo narrado futebol pelo menos uma vez por semana nos últimos 53 anos, ele diz que ainda sente muito tesão pelo trabalho e não se vê em silêncio no futuro próximo. Mas apesar de ser um dos melhores locutores em atividade, Silvério teme o que temem muitos brasileiros em tempos de crise: o desemprego.
Depois de ver tantos colegas demitidos, ouvindo as empresas de comunicação falarem em cortes de custos, ele receia a possibilidade de não ter seu contrato renovado no fim do ano. “Se não quiserem renovar, vou procurar outro lugar pra trabalhar. Mas e se ninguém quiser dar emprego para um velho de 70 anos?”, se pergunta ele.
Quando o juiz apita o fim do jogo, ele se despede dos ouvintes e chama novamente Milton Neves. Desliga o microfone e critica o time do Palmeiras. Guarda seu fone de ouvido, joga fora suas anotações, vai ao banheiro, volta, aperta a mão do técnico de som companheiro de tantas jornadas, sai da cabine e desce pelo elevador.
Ao cruzar o portão principal do estádio, ele diz que vai procurar um táxi, pegar seu carro na sede da rádio e dirigir durante a madrugada ao condomínio onde mora na região metropolitana de São Paulo.
Ele se despede e, de mochila nas costas e camiseta presa por baixo da calça, de repente parece um estudante colegial. Caminha calmamente em direção à rua e em alguns segundos se perde na multidão verde e branca.
Mas uma coisa ainda me parecia estranha.
Em algum momento do primeiro tempo de Palmeiras x Nacional, depois que o comentarista Claudio Zaidan acusou um jogador de estar fazendo muitas faltas, Silvério reagiu enigmático:
“É, Zaidan, eu também vou fazer falta...”
Estaria José Silvério antecipando o fim de sua carreira com uma mensagem cifrada? Ouvir aquilo da boca de alguém que tinha passado os últimos dias e as últimas horas negando que vai se aposentar me pareceu contraditório.
Então telefonei ao radialista para esclarecer as coisas. “Eu queria te perguntar o que você quis dizer com uma frase durante a transmissão”, disse e me preparei para recontar o lance. Mas o locutor me interrompeu com uma risada.
“Eu já sei o que você vai dizer”, disparou ele, se divertindo, com uma certeza desconcertante.
José Silvério tem a fama da antevisão, de prever que um gol vai sair antes dele acontecer. Dizem que o “pai do gol” costuma anunciar o tento antes de a bola cruzar a linha, pressentindo seu destino.
O jornalista Mauro Beting tem uma frase sobre isso. Segundo ele, Silvério nunca está errado e, quando o gol não sai, errado está o gol.
Cético, eu desafiei Silvério: “O que eu vou dizer então?”
“Você vai perguntar por que eu disse que eu ia fazer falta”, cravou ele, ainda rindo. Eu fiquei mudo. “Percebi porque você me olhou nessa hora.”
“Não foi nada demais, foi só para jogar uma pimentinha na transmissão”, explicou o radialista. “Fazer as pessoas pensarem.” E logo desligou o telefone e, efetivamente, me deixou sozinho, pensando...
***
* O jornalista Flávio Ricco, que publica uma coluna no UOL e em jornais como o "Diário de S. Paulo", mantém sua informação sobre a aposentadoria de José Silvério. Segundo Ricco, Silvério de fato teve conversa com "fontes importantes" da rádio Bandeirantes na qual manifestou seu desejo de parar de narrar após o fim de seu contrato, em dezembro deste ano.
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