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Rússia revive polêmicos "abrigos para bêbados" durante Copa do Mundo

Homem alcoolizado em rua de São Petersburgo, Rússia - Wikimedia Commos
Homem alcoolizado em rua de São Petersburgo, Rússia Imagem: Wikimedia Commos

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

07/03/2018 04h00

A Rússia resolveu reativar uma polêmica instituição da era soviética. Trata-se de um tipo de “abrigo para bêbados”, ou “centro de sobriedade”, que já funciona na cidade de Samara e, com pequenas variações em seu formato, atenderão torcedores nas outras cidades-sede da Copa do Mundo. 

Uma longa reportagem do jornal russo “Kommersant” descreveu, ano passado, como os abrigos vêm sendo ressuscitados, e questiona como exatamente a instituição funcionará em tempos modernos.

Os tais centros são, na prática, espaços reservados para pessoas alcoolizadas em clínicas e hospitais. Lá elas são tratadas de acordo com o nível de sua embriaguez: podem ser tanto dispensadas após algumas horas quanto encaminhadas para hospitais especializados em desintoxicação. 

A ideia inicial das autoridades russas era, segundo o “Kommersant”, instalar as tais "centrais de sobriedade" em onze cidades-sede da Copa do Mundo. Mas notícia publicada na última terça-feira (06) por outro veículo, o "Izvestia", diz que não será bem assim: na verdade, a não ser por Samara, as outras localidades teriam optado por uma espécie de "versão simplificada" dos abrigos. 

Na prática, porém, a única diferença entre o modelo relatado pelo “Kommersant” e pelo "Izvestia" está nos custos. Ao invés de criar abrigos permanentes como Samara, a maioria das demais regiões optou por separar leitos e alas para os torcedores que tenham passado do ponto, precisem eles apenas recuperar a sobriedade ou de algum cuidado médico mais complexo. Serão estruturas temporárias que funcionarão apenas durante alguns dias da Copa, diz o "Izvestia". 

Para o “Kommersant”, a realidade é que a instituição sempre foi vista como um “cartão de visitas do sistema repressivo soviético”. Tanto que chegou a ser totalmente abolida pelo Ministério do Interior em 2011, após 109  anos de existência. Os altos índices de alcoolismo na Rússia ao longo da história também são uma prova de que tais abrigos nunca foram lá muito eficientes.

Tratamento “humano”

As novas versões dessas “centrais de sobriedade” agora supostamente tratam os bêbados de forma mais “humana”, de acordo com o periódico. Samara reabriu a sua em 2015 e hoje conta com três unidades em funcionamento. Uma delas recebeu a visita do “Kommersant”.

No local, que funciona em um hospital, a reportagem do jornal encontrou dois quartos separados para os bêbados. Um para os homens, com seis leitos, e outro para mulheres, com dois leitos. Quem chega lá passa por exames médicos, como por exemplo o de urina, antes de receber ou não algum tipo de tratamento.

Teoricamente, uma das principais diferenças para os antigos “abrigos para bêbados” soviéticos está no fato de que nada é feito à força com os pacientes. Tanto que um sargento entrevistado pelo “Kommersant” reclama de que agora é preciso perguntar para os pacientes o que eles querem fazer – dormir, ficar no local? - enquanto antigamente tal procedimento não era necessário.

Dois atendimentos foram flagrados pela reportagem durante o período no hospital. Ambos completamente bêbados, Anatoly Vasilyevich e Leonid Ivanovich tiveram reações diferentes: o primeiro dá escândalo e não quer ser tratado, enquanto Ivanovich decide pelo tratamento e é enviado a um hospital especializado em narcóticos.

Embriaguez pública é justificativa recorrente

Aqui, entra um dado curioso relatado pelo “Kommersant”: os abrigos precisam ao menos fazer exames médicos para justificarem suas existências. Como os pacientes não são obrigados a declararem-se bêbados por conta própria, a saída é encontrar uma justificativa legal para atestar que eles estão bêbados. Isso é feito pela polícia, que acompanha pacientes normalmente fichados por “embriaguez em local público”.

Mas e se a pessoa é apanhada na rua e não há funcionários públicos ou policiais nas redondezas? Aí a saída é “flagrá-los” cometendo o delito no próprio “centro de sobriedade”. Afinal, o hospital também é um lugar público.

O problema é que nem sempre há policiais de plantão no hospital. A polícia se recusou a realizar tal função por considerar que não é sua tarefa deixar um policial plantado no hospital esperando bêbados. Mas ela é obrigada a comparecer imediatamente caso seja requisitada.

Pessoas pegas em situação de “embriaguez pública” que recusam receber tratamento acabam liberadas, mas recebem uma multa. Elas também não são obrigadas a se tratarem mesmo que, posteriormente, a Justiça decida por isso. Mas precisam pagar as multas de qualquer maneira: 1500 rublos (cerca de R$ 85). Ainda não está claro se a penalidade valerá também para torcedores estrangeiros. 

Abrigos à espera da Copa do Mundo

O “Kommersant” explica que, se por enquanto o movimento nos abrigos ainda é baixo, a expectativa é que isso mude durante a Copa do Mundo. Serão definidos dois pontos de “recolhimento” de torcedores bêbados em Samara.

O plano é encaminhá-los para dois hospitais da cidade. Durante a Copa da Confederações no ano passado, a cidade de Kazan já realizou experiência semelhante, e o número de pacientes nos abrigos aumentou 1,5 vezes durante o torneio.

Poster Russia - Reprodução - Reprodução
"Uma união vergonhosa: um preguiçoso + vodca!", dizia cartaz soviético de campanha contra alcoolismo de 1980
Imagem: Reprodução
Os problemas da Rússia com o alcoolismo têm séculos de história. Uma reportagem da revista norte-americana “The Atlantic” conta que um dos motivos para o Príncipe Vladimir ter convertido a nação ao cristianismo ortodoxo no ano 988 foi justamente o fato de a religião não proibir o consumo de álcool.

Álcool está na história russa

A reportagem se baseia em um longo estudo sobre a questão para contar também que, em 1223, o exército russo sofreu uma grande derrota para os mongóis em parte porque muitos de seus soldados iam bêbados para o campo de batalha.

Se o alcoolismo já causava grandes transtornos desde aquela época, por outro lado as bebidas alcoólicas passaram a ter grande importância para a economia local. Tanto que o czar Ivan, o Terrível, criou locais específicos onde as bebidas eram produzidas e vendidas. Eram chamados de kabaks, e viraram um monopólio na década de 1640. Em 1648, porém, nada menos que um terço da população masculina russa tinha dívidas com esses locais, e revoltas eclodiram pelo país.

A venda de vodka chegou a representar quase metade dos impostos recolhidos pelo governo russo por volta de 1850. Com a Revolução Russa em 1917, Lenin baniu a vodka, mas, após sua morte, Josef Stalin derrubou a proibição e as vendas da bebida ajudaram a financiar a industrialização do país.

Durante a era comunista, aliás, diversas tentativas de conscientizar a população sobre o alcoolismo foram feitas. Ficaram famosos os cartazes com frases e figuras que tentavam desmotivar os soviéticos a beberem. Em regra, porém, essas campanhas e proibições nunca deram resultado. Voltavam a afetar a economia e, após diminuir por um período, o consumo de álcool crescia novamente. 

“O que acontece na Rússia é uma questão cultural. Não é possível comprovar que um determinado povo ou etnia têm, por exemplo, um número maior ou menor de enzimas capazes de metabolizar o álcool”, diz Arthur Guerra, psiquiatra especialista em dependência química e presidente executivo do CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool).

As chocantes “alternativas” às bebidas

Em anos recentes, um novo problema surgiu na Rússia: pessoas ingerindo “alternativas” às bebidas alcoólicas mais baratas e de acesso mais fácil. No Brasil, a lista de itens seria bizarra até em uma festa universitária ou no Carnaval.

Poster Rússia 03 - Reprodução - Reprodução
"Combata a bebedeira!", dizia esse cartaz soviético de 1977
Imagem: Reprodução
Perfumes, colônias, loções para barba e até produtos de limpeza vira e mexe intoxicam um russo ávido por álcool. Em dezembro de 2016, 58 pessoas morreram após ingerirem, como se fosse licor, uma substância tóxica normalmente usada como solvente pela indústria química.

Em janeiro deste ano, o Ministro da Saúde da Rússia chegou a anunciar que o consumo de álcool no país caiu 80% entre 2009 e 2016. A BBC, entretanto, resolveu checar os dados e concluiu que não foi bem assim.

A rede britânica descobriu que as vendas oficiais de bebidas alcoólicas de fato caíram durante o período, mas em cerca de 30%. E, levando em conta os dados de janeiro a novembro do ano passado, as vendas de vodka, a bebida mais popular no país, na verdade cresceram 10%.

Além disso, os dados da Organização Mundial da Saúde sobre consumo de álcool são bem diferentes dos oficiais. De acordo com a entidade, os russos consumiram em média 13,9 litros de álcool por pessoa em 2016. É quase o dobro do divulgado pelo governo russo e mais que o dobro da média mundial naquele ano, que ficou em 6,4 litros de álcool por pessoa.

A grande diferença decorre, em parte, do fato de a Organização Mundial da Saúde considerar em seus cálculos apenas a população acima de 15 anos de idade. Já o governo russo divide o consumo de álcool pelo total da população.

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