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Opinião

Vini Júnior, felizmente, indomável

POR BRUNO AGUIAR*

Em tempos de memória seletiva, lembremos.

Nos idos do século 16 a Espanha imperial caçava os incas como bichos, abatendo-os um a um com a peculiar e bruta violência dos que se orgulham de serem civilizados.

Tupac Amaru foi o último dos reis incas. Viu seu povo ser dizimado, comprado, morto e torturado. Tentou, como pôde, resistir e fugir. Com a mulher grávida, diminuiu a velocidade da fuga e foi tratado com todos os requintes de crueldade muito bem desenvolvidos por aquela Espanha católica que tentava inculcar o medo do inferno. Antes que o fio da lâmina extirpasse sua cabeça do corpo em frente ao seu próprio povo, Tupac Amaru ergueu as mãos delicadamente e toda a gente silenciou. Disse, sereno: "Mãe Terra, testemunhai como os meus inimigos derramam o meu sangue".

Duzentos anos depois, como todos bem sabiam, Tupac Amaru haveria de voltar dos mortos. Na figura de José Gabriel Condorcanqui, voltou a assombrar os espanhóis que mantinham a barbárie em voga no Peru. Liderou a maior revolta anticolonial da história de todas as Américas. Quando capturado, teve seus membros amarrados a cavalos postos inutilmente em disparada, porque tiveram seus ventres rasgados pela força. Só restou aos espanhóis fazerem como fizeram com seu antepassado: usarem da lâmina e da força humana do carrasco.

Os bárbaros torturadores venceram e multiplicaram-se. Conseguiram construir uma linhagem que deságua nos tempos correntes. Passaram ilesos pelos séculos que nos separam. Foram homenageados, tornaram-se caudilhos e ídolos. Foram considerados santos.

É verdade, também, que se mantiveram inertes por um breve período. Hibernaram, esconderam-se como ratazanas, mas permaneceram atentos. Ao contrário de seus contendores históricos, aos quais fizeram descer a espada e o fogo, permaneceram vivos. Hoje, parte deles habita os estádios, a imprensa esportiva espanhola, salvo raríssimas exceções, e as redes sociais — pródiga em fazer transbordar o que há de pior em nós.

Vinícius Júnior lancinou esse mundo às avessas com a raridade de uma entrevista coletiva franca. Disse querer, apenas, jogar futebol — esse esporte que é o mais próximo que alcançamos da felicidade, como dizia Camus. Já aqui Vinícius Júnior é exceção, porque está no círculo corporativista que idolatra quem prioriza o carteado financiado pelos imorais dólares sauditas ou quem estupra e paga pela impune liberdade.

Não ele. Vini, não. Ele entra em campo e enfrenta, em noventa minutos, além dos onze adversários, incontáveis, bárbaros e seculares inimigos. E, como Tupac Amaru, não concede a eles o gosto da desistência: vence mesmo quando perde a partida.

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Cala os racistas com as armas que tem, e são elas abençoadas pelo mesmo realismo mágico que abençoou as pernas tortas de Mané. São os pés capazes de magia, de produzir a beleza que Camus queria esticar ao máximo, como a corda da felicidade. São pés capazes de fazer calar.

E é a voz dele que, embargada, emociona. É a voz que pode o impensável, o inimaginável num país fraturado: até mesmo fazer ressurgir um sopro de torcida por uma camiseta amarela que passou a significar a infâmia.

Mal sabe, Vini, que só querendo jogar bola sobre a Mãe Terra, desperta uma certa força ancestral. Talvez saiba. Penso que sabe. E azar dos broncos e imorais, dos racistas e caudilhos, porque a Mãe Terra testemunha, entre um drible e outro, Vinícius Júnior, indomável, mandando todos eles para o dantesco nono círculo do inferno.

*Bruno Aguiar é doutorando na Faculdade de Economia de Coimbra, em Portugal.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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