Futebol pelo mundo

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Gols, dinheiro e sonhos: como Messi está transformando o futebol nos EUA

A cena se repete em uma praça de Nova York, na fila de embarque de um aeroporto de Londres, na pelada improvisada de uma praia em Barcelona ou numa cidade perdida no interior de Montenegro: uma criança vestida de rosa ostenta orgulhosa a nova camisa da moda no esporte mundial. Nas costas, o número 10 preto e as cinco letras que estão causando uma revolução no futebol da maior economia do mundo: Messi.

Essas mesmas cinco letras que dão superpoderes a anônimos têm a capacidade de transformar a lista de convidados de um jogo de futebol em um conjunto de nomes que poderia ser uma mistura de indicados ao Oscar e vencedores do Grammy. Tímido, sem arriscar falar inglês em público (embora entenda quase tudo) e com uma bola nos pés, Lionel Messi espalhou o rosa do Inter Miami pelo planeta, e espremeu o mundinho de Hollywood nas arquibancadas dos estádios norte-americanos.

Aos 36 anos e campeão do mundo, o argentino escolheu a MLS para mudar o ritmo da vida e da carreira. Acabou mudando o ritmo de um país inteiro. Ainda é difícil medir o impacto de Messi no futebol dos Estados Unidos, mas já é possível medir a história da liga em antes e depois da chegada do craque.

A proliferação das camisas do Inter Miami e dos famosos que se acotovelam nas arquibancadas são apenas dois sintomas da Messimania. Economicamente, o faturamento gerado por ambos é pouco relevante — sobretudo se comparado a outras fontes de renda, como direitos de transmissão —, mas ambos ajudam a entender um ecossistema maior.

Kim Kardashian, Serena Williams e LeBron James na estreia de Messi pelo Inter Miami
Kim Kardashian, Serena Williams e LeBron James na estreia de Messi pelo Inter Miami Imagem: Mike Ehrmann/Getty

A camisa de Messi levou apenas 45 minutos para se tornar a mais vendida da história da loja da MLS. Dentre todos os compradores, 89% foram novos clientes, que nunca tinham comprado produtos oficiais da liga. Tentar comprá-la atualmente é impossível; o site só oferece a opção de reservar o item, sem uma data fixa para entrega.

As três primeiras partidas do camisa 10 no Inter Miami foram as três campeãs de audiência no MLS Season Pass (o streaming oficial da liga). Usuários de mais de 100 países estavam conectados para as transmissões em inglês e espanhol.

Há quatro meses, o cenário parecia distante, para não dizer impossível. O contrato de Messi com o PSG caminhava para o fim, mas havia ao menos duas opções apetitosas na mesa do argentino: o retorno a Barcelona, de onde ele não queria sair em 2021, e uma proposta do Al-Hilal, da Arábia Saudita — 300 milhões de euros (R$ 1,6 bilhão) por ano, o maior salário da história do esporte.

Messi disse "não" ao Barcelona porque o clube teria de fazer uma série de operações financeiras rocambolescas que incluía vender jogadores, para "quem sabe conseguir viabilizar o negócio"; negou a proposta saudita porque nem ele, nem a família, queriam morar no país.

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A opção de ir a Miami era a que mais agradava ao jogador, a esposa, Antonella Roccuzzo, e os três filhos. "Estamos onde queríamos estar" é a frase que o argentino tem dito — em público e em conversas privadas — desde que pisou na Flórida.

A MLS, claro, também comemora. "É um momento histórico para a liga. O impacto de Messi pode ser sentido em todos os âmbitos: no esportivo, o Inter Miami era o último colocado e não perdeu mais [o time foi derrotado pelo Atlanta United no sábado, por 5 a 2, sem Messi]; no midiático, porque todos os dias tem algum meio de comunicação falando de Messi; no comercial, porque as vendas de ingressos e de camisas aumentaram muito; e no social, porque o futebol entrou na vida das pessoas", afirma o espanhol Alfonso Mondelo, diretor de competições da Major League Soccer.

Messi comemora o título da Copa das Ligas pelo Inter Miami
Messi comemora o título da Copa das Ligas pelo Inter Miami Imagem: Tim Nwachukwu/Getty

Bola na rede

A chegada de Messi a uma liga distante do primeiro nível do futebol mundial já seria, por si só, um atrativo — os números de vendas de tudo relacionado a ele, antes mesmo da estreia, não deixam dúvidas. Mas, além do marketing, o argentino chegou com atuações decisivas dentro de campo. As defesas da MLS podem não ser como as da Champions League, mas é difícil menosprezar o impacto que o camisa 10 teve desde sua estreia, em 21 de julho.

Nos 11 primeiros jogos pelo Inter Miami, Messi marcou 11 gols, deu cinco assistências e levou o time ao primeiro título de sua história (a Copa das Ligas, com equipes da MLS e da primeira divisão do México), sendo artilheiro e melhor jogador.

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A coleção de melhores lances tem gols de fora da área, cobranças de falta perfeitas, tabelas milimétricas, tudo repetido à exaustão em vídeos nas redes sociais, onde a MLS, Messi e o Inter Miami parecem estar onipresentes. E realmente estão: um bom exemplo é o perfil do clube no Instagram, que passou de 1 milhão para 15 milhões de seguidores desde o anúncio da contratação.

"Ele acabou de ganhar uma Copa do Mundo, é um Messi em ótimo nível. Antes de vir pra cá, ele poderia ter ido para o Barcelona, mas escolheu a MLS. O impacto imediato é que o Inter Miami conseguirá melhores resultados, mas isso também levará os outros clubes a melhorarem", avalia Alfonso Mondelo.

A melhora dos adversários passa por contratações de mais jogadores de alto nível. Nos bastidores da MLS, estima-se que a liga dará um passo adiante nas próximas janelas do mercado — em janeiro, após o fim dos playoffs, e em junho, ao final da temporada europeia. No próprio Inter Miami, a chegada de Messi abriu as portas para Sergio Busquets e Jordi Alba, ambos recém-saídos do Barcelona.

David Beckham, Messi e Busquets durante um jantar em Miami
David Beckham, Messi e Busquets durante um jantar em Miami Imagem: Reprodução

A fábrica de dinheiro

A ida de Messi para a MLS não mudou o ritmo apenas da cidade de Miami, onde o argentino se integrou rapidamente — o ambiente latino do clube, da torcida e dos companheiros colaborou, segundo ele mesmo admite. A "Messimania" também dilatou o espaço que o futebol ocupa nos meios de comunicação dos Estados Unidos.

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"O impacto de mídia é extremamente importante. A MLS hoje, mesmo já sendo uma liga relevante no mundo, ainda não conquistou 30% das pessoas que se declaram fãs de futebol nos EUA e Canadá. Um impacto como esse pode fazer esse número doméstico crescer e fazer a liga ter um poder financeiro ainda maior", avalia o consultor Diogo Kotscho, ex-vice-presidente do Orlando City e especialista no mercado norte-americano.

A concorrência interna é pesada. A MLS não luta por espaço apenas com o futebol europeu. No mercado americano, a concorrência com ligas como a NBA (basquete), MLB (beisebol), NHL (hóquei no gelo) e NFL (futebol americano), além das competições universitárias que também atraem multidões. A MLS luta há 30 anos para encontrar seu espaço, e a chegada de Messi é vista como um ponto de inflexão.

"Existem três pontos fundamentais para o futebol nos Estados Unidos", afirma Alfonso Mondelo, que enumera: "A chegada de Pelé, nos anos 1970, a vinda de Beckham para a MLS, e agora a contratação de Messi". Diogo Kotscho acrescenta outros dois momentos fundamentais: "a Copa de 1994, que foi o embrião da MLS, e o segundo boom da liga, com as contratações de estrelas como Kaká, Villa, Nani, Pirlo, Lampard, Gerrard e Ibrahimovic".

Essa constelação desembarcou na MLS já na fase final de carreira, mas ainda em nível competitivo. Na época, uma franquia na liga custava em torno de US$ 50 milhões (R$ 243 milhões); em maio deste ano, o direito de criar uma nova equipe em San Diego foi comprado por um valor dez vezes maior.

A primeira temporada de Messi é também a primeira de um acordo mundial da MLS com a Apple, para a transmissão dos jogos por streaming. A presença do argentino já catapultou o número de assinantes para muito além das projeções, feitas em um mundo em que o craque ainda não estava vestido de rosa. O acordo global tem 10 anos de duração; de acordo com o The Athletic, Messi terá direito a uma parte do faturamento.

Enquanto a MLS já muda os parâmetros de planejamento financeiro, vê recordes sendo batidos em sequência e vira assunto em páginas nunca antes imaginadas — os principais meios de comunicação de esporte da Europa, por exemplo — quem está no andar logo abaixo também comemora.

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"Mais gente está falando sobre futebol, mais publicações estão dando espaço, a modalidade está em todos os lugares. Isso leva as pessoas a procurarem os clubes de suas cidades, ou de seus bairros, e a irem aos jogos desses clubes", afirma Daniel Holman, chefe de operações da USLC, a segunda liga mais importante do país.

Assistir aos jogos dos times mais próximos pode virar uma opção ainda mais atrativa no futuro, já que há uma tendência de aumento dos preços da MLS, com a chegada de mais astros internacionais. Nesse ponto, o "impacto Messi" também foi imediato.

Desde a chegada do argentino, o preço dos ingressos subiu como nunca antes: um tíquete para o duelo contra o Cruz Azul, em 21 de julho, era vendido por US$ 29 (R$ 141) antes do anúncio da contratação do argentino, e saltou para US$ 459 (R$ 2.240) depois que se tornou a data da estreia do camisa 10.

David Beckham, um dos donos do Inter Miami, durante estreia de Messi pela equipe norte-americana
David Beckham, um dos donos do Inter Miami, durante estreia de Messi pela equipe norte-americana Imagem: Sam Navarro-USA TODAY Sports via Reuters

Os sonhos americanos

Quando o Inter Miami anunciou a contratação de Lionel Messi, em um vídeo nas redes sociais, no dia 7 de junho, muitos sonhos se uniram. Um deles era o sonho de David Beckham, um dos acionistas do clube. Em 2017, durante a gravação de um comercial em Barcelona, ele disse ao argentino: "Um dia vou te contratar".

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A família de Messi também sonhava com os Estados Unidos. Miami tinha três atrativos: o clima, a forte presença latina (que relativiza a importância de falar inglês) e, claro, a chance de jogar no time de Beckham. A paz que Messi mostra em campo e nas entrevistas tem uma explicação. "Quando ele foi para Paris, ele não teve escolha; mas com Miami é diferente, porque foi ele que escolheu", conta ao UOL uma pessoa próxima ao jogador.

O terceiro sonho da equação era o da MLS. A ideia de ter um craque da primeira prateleira internacional é um objetivo da liga há pelo menos 15 anos, mas a chegada de Messi é mais do que isso. Ela chega num momento de efervescência no cenário esportivo norte-americano, especialmente no que diz respeito ao futebol.

"O impacto de Messi, somado à Copa América em 2024, ao Mundial de Clubes em 2025, à Copa do Mundo em 2026 e às Olimpíadas de Los Angeles em 2028, será muito importante para colocar a MLS e o futebol nos EUA como um dos mercados mais relevantes do mundo", afirma Diogo Kotscho.

O diretor de competições da liga, Alfonso Mondelo, traça um objetivo ousado. "Queremos brigar com as 5 maiores ligas do mundo. Os números atuais já dizem muita coisa, mas o principal impacto que Messi pode ter na MLS e nos Estados Unidos é deixar um legado de mudança no nível do esporte", conclui.

Reportagem

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