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Blog da Amara Moira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Caso Cuca ou quando estupradores eram heróis

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Não é verdade que o caso do estupro coletivo envolvendo quatro jogadores do Grêmio em 30 de julho 1987, em Berna (Suíça), dentre os quais se encontrava o atual treinador do Corinthians, Cuca (Alexi Stival), só veio à tona após a publicização da condenação de Robinho pela Corte de Apelação da Justiça italiana em 2020. Podem não ter sido muitas as rememorações do caso, mas elas ocorreram sim, como por exemplo na matéria "Esporte convive com acusações de assédio", publicada pela Folha de SP em 18 de maio de 1996, na qual se menciona que os jogadores "ficaram 28 dias detidos" e "dois anos depois, foram condenados pela justiça daquele país, mas cumpriram a pena em liberdade" (p.13).

A referência ao caso deu-se em função da matéria que ocupou quase uma página inteira daquela edição: a acusação de assédio que a manicure Cláudia Cavalcante fez contra o então técnico do Palmeiras, Wanderley Luxemburgo. De acordo com Cláudia, o atendimento teria ocorrido no apartamento em que estava hospedado Luxemburgo, com o técnico vestindo apenas uma toalha de banho: "Quando iniciou o trabalho, a manicure disse que ele já exibia os órgãos genitais por entre a toalha, mas que ignorou". No entanto, após receber o pagamento e dirigir-se à saída, o abuso teria se intensificado:

"'Quando estiquei a mão para dar boa noite, ele me puxou e começou a beijar o meu pescoço e enfiar a língua na minha orelha. Luxemburgo viu que eu estava tremendo e falou que não era para ter medo porque ele só ia me dar carinho', afirmou. Nesse momento, a manicure disse que viu pela toalha que o treinador estava excitado. 'Senti ele colocar o pênis entre as minhas pernas. Eu estava de calça jeans e camiseta preta sem decote. Em momento algum dei motivo para isso. Até agora sinto o cheiro daquele homem e tenho nojo.'"

A citação é longa, mas acredito que importante, pois mostra o tanto de coisas que se passa na cabeça de uma mulher, no esforço desesperado para não ser mais uma vítima de agressão sexual: ela menciona até a roupa que estava vestindo, pois sabe que vive numa sociedade que vai tentar invalidar sua palavra, caso sua roupa seja considerada "provocante". A justiça inocentaria Luxemburgo dois anos depois, mas outro elemento da história merece ainda destaque: o fato de a produtora erótica Brasileirinhas ter se inspirado no caso e, poucos meses depois, lançado o filme "Vanderburgo e a manicure".

Uma denúncia de assédio que se transforma em mote para um filme pornô, percebem como age a cultura do estupro? A erotização da violência e da subjugação da mulher está por toda parte, por toda parte se repete que a mulher, quando manifesta dor, pode estar sentindo prazer e, quando diz "não", na verdade só quer que você insista. Em função disso, o homem tem plenos poderes para interpretar como quiser a palavra da mulher, podendo inclusive alegar, a qualquer momento, não ter percebido que ela não estava gostando ou que ela não queria ou, mesmo, que ela queria que ele parasse.

E isso nos conecta diretamente à cobertura que a mídia, sobretudo a gaúcha, fez do "escândalo de Berna" em fins da década de 1980. O jornal humorístico Pasquim/RS, por exemplo, respondendo a uma leitora que estava "chocada com a recepção que os estupradores gremistas tiveram, quando de sua chegada a Porto Alegre" (ela mencionaria ainda uma crítica que o cartunista Jaguar teria feito aos acusados), publicaria uma foto da vítima do estupro junto com a seguinte nota (edição de 17 a 23/09/1987):

"Vergonheira coisa nenhuma. Nossos briosos atletas do sexo honraram as tradições gaúchas no exterior, matando a cobra e mostrando o pau. E com a gloriosa camisinha tricolor. Quanto às críticas do Jaguar aos meninos de Berna — posso assegurar-te Bia — só aconteceram porque ele não viu a tal menininha. Nem ele resistiria aos atributos dessa potranca criada a chocolate e queijo suíço. Dá só uma espiada aí, na foto do Paulo Dias, publicada em ZH [Zero Hora, jornal de Porto Alegre]."

Um charge publicada no período ajuda a ilustrar os fatos. Nela, enquanto um noticiário de TV diz, num primeiro balão, "Suíça: garota precoce seduz quatro..." um outro balão completa: "... varões gaúchos. Namorado chifrudo apresenta queixa." Ao lado disso, um homem lê um jornal com a manchete "ESTUPRO???" e comenta: "Ora! Chocolate e queijo! Um homem precisa comer mais que isso!!!". A charge consta na matéria "Os estupradores que viraram heróis" (jornal Mulherio, 10/1987, p.3-4), de autoria de Miriam Grossi e Carmen Rial, que fizeram uma grande compilação de todo o lixo machista publicado pela imprensa gaúcha nos dois meses que se seguiram ao estupro.

A matéria está disponível para consulta na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e vale muito a pena a leitura, até para percebermos que o problema não são só os quatro mosqueteiros gremistas, mas boa parte da sociedade ao redor. A euforia com que os, à época, "acusados de estupro" foram recebidos em Porto Alegre por uma multidão em festa gritando "puta" (referindo-se à adolescente violada), o perdão do Grêmio aos jogadores por perceber que eles agora eram tratados como heróis, as acusações de que a justiça suíça era severa demais, a erotização e culpabilização da menina, a insinuação de que, se não a estuprassem, seriam "bichas", tudo isso apresentado em minúcias nessa matéria sensacional.

De lá, trago a seguinte citação, feita à época por um importante cronista no "Jornal do Almoço" da RBS (a filial da Globo no RS): "Eu sou pai, você que é mãe ou pai vai me entender: não é a mesma coisa um filho ou uma filha. Todo pai quer que o seu filho fature todas as meninas do bairro, quer que ele seja o garanhão da turma. Já com a filha é diferente. Não se deve culpar os rapazes do Grêmio por terem feito o que todo pai gostaria de ver o seu filho fazer."

Percebem o que a Milly Lacombe quer dizer quando escreve que "Cuca não é um monstro" ou quando eu escrevo que "Robinho não é um monstro, é só um homem que foi pego"? Numa sociedade que nos forma a partir desses discursos, é importante percebermos que homens que cometem estupros não são monstros, seres alienígenas, fora da realidade, e sim pessoas criadas para se comportar exatamente dessa maneira, crias saudáveis da cultura do estupro. Isso não significa que não devam ser julgados e punidos pelo que fizeram, só que não podemos nos iludir que o problema são só eles (ou que podemos superar essa situação simplesmente aumentando a população carcerária).

De qualquer forma, ainda que sejamos bombardeados com essa cultura o tempo todo, se fomos capazes de aprendê-la, somos também de desaprendê-la e de aprender outras coisas no lugar. Mesmo os homens. Como exemplo disso, recomendo a leitura da carta publicada por Alberto Villas no Caderno2 do Estadão, em 02 de setembro de 1987 (p.34). Nela, o escritor mostra-se pasmo com o fato de terem transformado em heróis os jogadores do Grêmio acusados de estupro e termina com o seguinte comentário:

"Ando um pouco cansado de ser feminista. Está cada vez mais difícil conviver com meus amigos homens. De tarde, no hotel onde estou, comentei o caso com uma pessoa que lia a notícia no Correio do Povo. Ela concordou comigo. Era uma mulher."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi informado em uma versão anterior do texto, a matéria da Folha "Esporte convive com acusações de assédio" foi publicada em 1996. O erro já foi corrigido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL