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Tales Torraga

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Faz 45 anos hoje: o dia em que Diego Maradona foi cortado da Copa do Mundo

Diego Maradona em 1981 - Duncan Raban/Allsport/Getty Images
Diego Maradona em 1981 Imagem: Duncan Raban/Allsport/Getty Images

Colunista do UOL

19/05/2023 09h39

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Como Diego Armando Maradona, um dos maiores jogadores de todos os tempos, foi "cortado" de uma Copa do Mundo, sem ter espaço nem entre os reservas?

A coluna reproduz abaixo o respectivo trecho do livro "Copa Loca". Lançado no Brasil pela editora Garoa Livros, a obra traz um compilado das melhores histórias da Argentina nos Mundiais.

"Saem Bottaniz, Bravo... e Diego."

Era a tarde de 19 de maio de 1978, e os 25 jogadores da seleção argentina estavam sentados no gramado da concentração montada na Fundação Natalio Salvatori, no município de José C. Paz, na província de Buenos Aires.

Faltavam duas semanas para a abertura da Copa do Mundo, e César Luis Menotti precisava cortar três nomes. Sua lista de 25 atletas deveria ser reduzida a 22.

As ausências de Víctor Alfredo Bottaniz, meio-campista do Unión de Santa Fé, e Humberto Rafael Bravo, atacante do Talleres, jamais seriam contestadas. Mas por que Diego Armando Maradona Franco, considerado por boa parte dos argentinos como o maior jogador já nascido no país, não foi chamado sequer para ficar no banco durante aquele Mundial?

Maradona tinha apenas 17 anos quando soube que não jogaria a Copa disputada na Argentina. Estreara com a camisa azul e branca mais de um ano antes, em 27 de fevereiro de 1977, contra a Hungria, na Bombonera. O "Pibe de Oro" tinha então 16 anos e 4 meses, e vestia a camisa 19.

Já era Maradona, embora somasse apenas onze jogos e dois gols pelo Argentinos Juniors, clube pelo qual começou a desfilar a sua capacidade de escolhido dos deuses do futebol, até o começo de sua história com a seleção.

Diego sempre considerou Menotti um pai. Também por isso o técnico relutou tanto em tirá-lo da Copa de 1978. "Não tinha escolha. Precisava de homens, não de um menino como era Diego", repete sempre que é questionado sobre as razões da exclusão de Maradona de sua lista de convocados.

A escolha dos atletas que representariam a Argentina no primeiro Mundial disputado no país era realmente uma questão mais profunda. Menotti havia implantado uma série de mudanças em toda a estrutura da seleção. Talvez o mais correto seja dizer que ele criou uma estrutura. Antes de 1978, a Argentina era uma bagunça de fazer inveja até mesmo aos períodos mais anárquicos da seleção brasileira. Com" El Flaco" ("o magro") no comando, a história mudou.

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César Luis Menotti, técnico da Argentina na Copa de 1982
Imagem: Reprodução AFA

Um dos grandes da história

Não é exagero dizer que César Luis Menotti é um dos treinadores mais influentes da era moderna do futebol. Ex-atacante de Rosario Central, Racing, Boca Juniors e Santos (e, de forma um tanto insólita, do simpático Juventus da Mooca, onde encerrou sua carreira), não demorou a fazer sucesso como técnico, comandando nomes como Carrascosa, Houseman e Basile no Huracán.

Depois da passagem marcante pela seleção, treinaria Barcelona, Boca, River e vários outros grandes clubes. Pregava um futebol técnico, vistoso e ofensivo, que valorizava a posse de bola e o jogo coletivo. Um pensador do esporte, um revolucionário do futebol e o homem certo para comandar as transformações necessárias para que a azul e branca enfim ganhasse um Mundial.

O que não mudava era a pressão que os homens que mandavam na Argentina exerciam sobre o selecionado, que entrava naquela Copa com a obrigação de ganhá-la a qualquer custo. Era cena comum a preparação argentina ser interrompida pela visita de um dos militares que estavam à frente do regime; ironicamente, o técnico da Argentina na Copa dos generais fora militante do Partido Comunista.

Neste cenário de loucura, uma das versões que justificam a ausência de Maradona da Copa de 1978 é repetida até hoje por Beto Alonso, o ídolo do River que ocupou o lugar que seria do "Pibe".

"Ocupar" talvez não seja a melhor definição: lesionado em boa parte do tempo, ele apenas fez parte do grupo campeão do mundo, sem provocar impacto na campanha.

Alonso sustenta que sua convocação foi uma imposição do almirante Carlos Lacoste. O raciocínio de Alonso faz sentido: Lacoste era o responsável por fazer a ditadura ganhar legitimidade através da seleção. Para manobrar as massas e despistar o que ocorria fora dos gramados, era mais útil contar com o maior ídolo do River Plate, clube cujo estádio - o reformado Monumental de Núñez - seria o palco central daquela Copa.

Menotti nega. Diz que sua opção foi técnica. Alonso, afinal, tinha 25 anos e já havia provado seu valor em outras convocações. Integrava a seleção desde 1972. Era uma realidade, enquanto Maradona, com oito anos a menos, ainda precisava deixar de ser uma promessa.

O argumento do treinador encontra justificativa também em sua lista final para o torneio.

Os mais jovens entre os 22 convocados eram o lateral Tarantini e o meia Valencia, ambos de 22 anos. Os titulares tinham média de idade de 25 anos. Encaixar Maradona em um grupo de outra geração não era algo que fazia sentido na cabeça de Menotti, embora a habilidade de Diego já fosse realmente encantadora desde esses tempos.

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Maradona passou cinco anos no Argentinos Juniors antes de chegar ao Boca em 1981
Imagem: Getty Images

O melhor Maradona

Quem viu Maradona jogar no Argentinos Juniors garante que aquela foi a melhor versão do craque. Seus companheiros costumam dizer o mesmo. "Joguei com ele no Argentinos e joguei com ele na Copa de 1986. E posso dizer que o Diego do Argentinos era melhor. Saltava mais alto, corria mais, ainda não estava tão destruído pelo jogo sujo dos adversários", diz o antigo parceiro Claudio Borghi.

Mesmo adolescente, Maradona era o grande craque daquele elenco, o que fez Menotti quebrar a cabeça sobre seu corte até o último minuto. Quem dá mais detalhes do dia em que Diego ficou sem a Copa é Roberto Saporiti, o "Sapo", o então braço-direito do treinador.

"Menotti estava fora da concentração naquela manhã. Fui o responsável pelo treino. Diego estava entre os reservas e fez quatro gols. Foi uma coisa que só os grandes jogadores podem fazer", descreve Sapo.

"Quando encontrei César à tarde, a primeira coisa que fiz foi falar da atuação de Diego. 'Flaco, você precisava ver, foi algo espetacular...' Ele logo me cortou, dizendo que Maradona ficaria fora daquela Copa. Para mim, Diego precisava estar entre os 22, seria um desperdício não chamá-lo, e conversei isso em bom tom com César, mas ele se alterou e quase me bateu."

Saporiti reconhece que a decisão era das mais difíceis.

"Menotti diria tempos depois que aquela tinha sido a escolha mais complicada que ele precisou fazer em toda a sua vida. E o entendimento dele era que Maradona, no banco, poderia representar uma pressão para os demais, os mais experientes, aqueles que ele imaginava que precisariam começar como titulares."

Notório fumante e leitor voraz de livros, revistas e jornais, Menotti certamente consumiu maços e mais maços refletindo sobre o tema e pesando todas as opiniões já publicadas sobre o episódio. Levou quase quatro décadas para manifestar seu arrependimento. No fim de 2017, o Flaco reconheceu que errou ao não chamar Diego para aquele Mundial. "Sim, foi um erro da minha parte, mas não posso dizer que me arrependo disso. Afinal, ganhamos aquela Copa", disse.

Como todo prodígio, Maradona sofreu demais com aquela rejeição. Os jornalistas presentes à concentração no momento em que Menotti o comunicou da ausência na Copa relatam que Diego saiu correndo e foi chorar sob a copa de uma árvore. O próprio Maradona, em sua autobiografia "Yo Soy El Diego De La Gente", reconhece que foi tomado pela dor. Naquele instante, a única coisa que ele pensava era em como daria a notícia aos seus pais, Don Diego e Doña Tota.

Maradona já era uma estrela em 1978 - e todas as regalias de que sempre desfrutara pelo talento com a bola nos pés não serviam para nada naquele instante. Foi, segundo o próprio Diego, o maior choque de sua vida. O "Pibe" canalizou sua raiva brilhando ainda mais pelo Argentinos. No primeiro jogo logo depois de seu corte, contra o Chacarita Juniors, marcou dois gols e serviu duas assistências na vitória de 5 a 0 do Argentinos.

O passar do tempo dá uma certa razão a Menotti em sua decisão de não levar Maradona à Copa. O fato de a Argentina ter sido campeã sem ele é um argumento forte o bastante para o técnico repetir para sempre sem ser muito incomodado. Seu objetivo naquele Mundial era ganhar. O país vivia uma loucura coletiva sem precedentes, e a pressão que o treinador absorvia de todos os lados era realmente impossível.

Não dava para pedir muita sensatez a quem precisava lidar com um batalhão de pessoas - generais, torcedores, jornalistas, subordinados - e infinitas decisões a cada dia.

Em 1982, já com 21 anos, Maradona não rendeu o esperado no Mundial da Espanha. Então é de se entender que a escolha de Menotti quatro anos antes fazia mesmo sentido. Quem conviveu com Diego naquela época relata que ele evoluiu bastante nos anos que se seguiram à Copa de 1982. Era um Maradona ainda em formação em 1978, e o Mundial seguinte, o de 1982, marcaria o fim de seu ciclo de amadurecimento. Isso permitiria que a partir de 1983, com a chegada de Carlos Salvador Bilardo - que resolveu colocá-lo como capitão da equipe e fazer de Diego o dono do time -, o "Pibe" enfim pudesse despontar e ser amplamente reconhecido como o maior de todos os jogadores argentinos.

A Copa de 1978 está longe de ser a única decepção de Maradona com o torneio, mas ele considera a dor provocada pelo corte ainda maior do que sua exclusão por doping em 1994, por exemplo. Em sua autobiografia, diz que "estava melhor que nunca" e que "só duas pessoas, Gallego e Luque, foram consolá-lo". Conta ainda que seu empresário "foi encontrá-lo chorando já na véspera" e que "previa que seria cortado, que já pressentia isso".

"A primeira coisa que quis fazer era pegar minhas coisas e sair dali o mais rápido possível", relembra. "O pior foi quando cheguei em casa. Parecia um velório. Choravam todos, meu pai, minha mãe... Diziam que eu era o melhor, que eu jogaria cinco Copas. Foi a maior desilusão da minha vida, aquela que me definiu."

Maradona esteve no Monumental de Núñez como torcedor em dois jogos do Mundial: na derrota para a Itália na primeira fase e na finalíssima contra a Holanda. Enquanto Kempes fazia seus gols no gramado, Diego os gritava na tribuna. Na Espanha, em 1982, os dois estariam juntos no gramado, formando o ataque da seleção.

Depois do triunfo sobre os holandeses, Maradona subiria na caminhonete do seu sogro para comemorar o título argentino por toda Buenos Aires. "Mas na minha cabeça estava bem claro que eu poderia estar em campo e poderia ajudar. Ali, ao ficar fora da lista dos 22 por ser muito jovem, percebi que a bronca era o meu combustível."

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Pelé e Maradona superaram a relação conturbada e viveram amizade inesperada.
Imagem: Facebook/@maradona

E contra Pelé?

Ao ser cortado do Mundial de 1978, Maradona perdeu sua grande chance de ser realmente equiparado a Pelé, repetindo a façanha do brasileiro vinte anos antes, na Suécia, quando o jovem astro do Santos foi a estrela daquela Copa do Mundo.

O raciocínio do torcedor "maradoniano" mais empedernido —e eles brotam a cada esquina em Buenos Aires, especialmente na região de La Paternal, onde fica o Argentinos Juniors - é o seguinte: a contagem de títulos entre Pelé e Maradona não refletiria o real impacto dos dois em Mundiais. Para tentar sustentar essa teoria, os súditos de Diego lançam mão de uma peculiar argumentação. Ei-la.

Para eles, as três Copas de Pelé são relativas. Garantem que em apenas uma, a de 1970, ele foi mesmo titular e decisivo para a conquista brasileira — que tinha, afinal, um timaço, com Rivelino, Tostão, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto. Em 1958, Pelé entrou durante a campanha, e atuou ao lado de monstros como Garrincha, Nilton Santos, Didi e Vavá.

Em 1962, Pelé precisou deixar a seleção, machucado, e sua ausência nem foi tão sentida assim, já que o Brasil conseguiu ser campeão mesmo sem o Rei em campo. O bi foi construído graças às pernas tortas de Garrincha - que, de quebra, ainda teve a colher de chá de escapar de uma suspensão depois de sua expulsão contra o Chile na semifinal.

Por outro lado, os seguidores do culto maradoniano tratam de defender que o único título de Diego é uma aferição enganosa de sua grandeza. A começar por 1986 - para os argentinos, uma façanha incomparável, que ninguém igualou antes ou depois, com Maradona resolvendo sozinho, brilhando em meio a jogadores como Enrique, Valdano ou Burruchaga, que jamais seriam estrelas.

A peculiar matemática dos fãs mais incondicionais do Pibe também coloca na conta do craque dois "quase títulos".

Lembram que ele também teria sido campeão em 1978 caso o Mundial tivesse disputado em outras circunstâncias que não as daquela Argentina convulsionada pela brutal ditadura. Afinal, não fosse o país-sede aquele barril de pólvora prestes a explodir, Diego acabaria sendo convocado, argumentam os fanáticos.

Para completar, em 1990, mesmo com Maradona gordo e machucado, a Argentina foi vice graças a um pênalti dos mais questionáveis. A decisão do árbitro mexicano Edgardo Codesal permitiu que a Alemanha Ocidental marcasse o único gol da decisão em Roma. Isso sem falar em 1994. Muitos argentinos juram que o tri de seu país viria antes do tetra brasileiro não fosse pelo doping de Maradona.

Chorando à sombra da árvore na concentração, o jovem Diego de 1978 não seria capaz de imaginar uma porção sequer de todas as surpresas e reviravoltas que a Copa do Mundo ainda lhe reservaria.

Seu ciclo na seleção estava apenas começando - e nada seria igual depois da sua chegada aos Mundiais, quatro anos depois.