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Netflix e o poder de autodestruição do tênis

Após duas entediantes temporadas, a Netflix cancelou a produção da série Break Point, a versão tenística de Drive to Survive, um programa que tentava replicar no esporte da bolinha amarela o sucesso da Fórmula 1, que conseguiu belos números de audiência e atraiu um novo público para a categoria.

Segundo reportagem do Times, a interrupção da série teve a ver com três fatores: baixos números de audiência, falta de acesso aos melhores jogadores e relutância a abordar temas polêmicos. Em outras palavras, Break Point falhou nos aspectos em que o tênis falha todos os dias. Não é difícil entender. Os detalhes estão aí para todos verem.

Acesso

Embora exista um discurso universal no meio do tênis de que é necessário levar o esporte a outros públicos - sobretudo mais jovens - a modalidade é fechada em sua essência. Até mesmo para jornalistas. Conseguir credencial para cobrir um slam é um martírio. A imprensa que cobre slams regularmente é credenciada quase que automaticamente. Para quem nunca foi a um torneio assim, é preciso apresentar todo tipo de documento, carta timbrada do veículo, prova dos números de circulação/audiência, etc. Ou seja, o acesso limitado começa já nos eventos mais importantes, e isso tem um efeito cascata que ninguém parece enxergar. Menos gente cobrindo significa menos alcance. Com menos veículos novos in loco, o esporte não chega a novos consumidores.

No caso específico da Netflix, os produtores esbarraram em outro problema recorrente do tênis. Mesmo que ATP e WTA se mostrem favoráveis ao documentário, as entidades não têm poder contratual para obrigar os atletas a darem esse acesso. Logo, o poder desconcentrado do tênis - distribuído entre ITF, ATP, WTA e os slams - tem mais uma consequência nefasta aqui. Um tenista produz seu próprio documentário aqui, outra atleta ali argumenta que a Netflix atrapalharia, outro não quer tanta exposição... e o tênis do nosso dia a dia segue "escondido" de mais pessoas enquanto não há uma unificação.

Egoísmo

ATP e WTA não são ligas como NFL, NBA, MLS e outras entidades de esporte profissional nos Estados Unidos. No tênis, os atletas são como free lancers. Jogam quando querem, onde querem e, embora haja um conjunto de regras, não há obrigação de, por exemplo, colaborar em uma iniciativa para o crescimento do esporte como um todo. No tênis, é cada um por si, e não são poucos os egoístas circulando pelos torneios procurando tirar vantagem de outros em benefício próprio e apenas próprio. E isso não é nenhuma novidade. Para alguns - mesmo aqueles que adotam o discurso do bem coletivo e do favorecimento aos de ranking inferior - é mais lucrativo produzir um documentário próprio e fechar-se à Netflix do que trabalhar de fato em prol do esporte.

Polêmicas

Controvérsias não faltam no tênis, mas o esporte e aqueles envolvidos em sua cobertura nem sempre têm a vontade de abordá-las. Sim, Break Point falhou hediondamente ao apresentar um episódio inteiro sobre Alexander Zverev sem mencionar que ele responde judicialmente em um caso de violência doméstica, mas há outros exemplos cotidianos que o meio do tênis, como um todo, varre para baixo do tapete.

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Um exemplo simples: a figura do técnico francês Patrick Mouratoglou, um exímio marqueteiro. Dá entrevistas para veículos de países diferentes, aparece como analista aqui e ali, tem redes sociais bem atualizadas e produzidas e até mantém no ar um bom site de notícias e análises (embora o veículo não deixe clara a participação do treinador em sua manutenção). Mouratoglou, aliás, até criou uma liga paralela de exibições, o Ultimate Tennis Showdown.

O francês, recentemente, admitiu sua responsabilidade no caso de doping de Simona Halep. Um depoimento que, ao que tudo indica, contribuiu muito para que a suspensão da romena fosse reduzida de quatro anos para nove meses. No entanto, durante o Australian Open Mouratoglou apareceu aqui e ali, trabalhando como comentarista, e ninguém tocou no assunto do doping. Não parece estranho?

Não é o único caso. Há conflitos de interesse por toda a parte no tênis, mas a maioria do meio opta, convenientemente, por fechar seus olhos. Que um tema delicado como o de Zverev não seja mencionado na Netflix é apenas o 389574º problema do tipo no dia a dia da modalidade - cronologicamente falando, e claro. Em relevância, dada a plataforma e a gravidade do caso, deveria ocupar os degraus mais altos dessa escada.

Foco nos Estados Unidos

Break Point tentou desesperadamente atingir o público estadunidense. Até exagerou, embora o motivo seja nobre. É um grande mercado, tanto em número de pessoas quanto em poder aquisitivo e dólares gastos na prática (o que é diferente do mercado europeu, onde há poder de compra, porém menos consumismo). É como se o tênis precisasse voltar aos anos 1990, quando havia trocentos torneios de quadra dura na "America", a Nike fazia campanhas ousadas com Agassi e Sampras, e o dinheiro circulava em volumes nada desprezíveis.

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Taylor Fritz, Tommy Paul, Ben Shelton, Frances Tiafoe, Coco Gauff, Jessica Pegula. Em uma série com apenas 16 episódios, faltou diversificar. Há histórias boas a serem contadas e, ainda com os problemas de acesso, era possível fazer mais e melhor. Break Point não conseguiu nem ser relevante nas histórias que contou (salvo uma ou duas exceções) nem cativar americanos interessados em seus compatriotas.

O tênis, hoje, é mais global do que nunca, e uma série sobre o esporte precisa diversificar. E se havia tanta preocupação com a audiência dos EUA, por que não apostar que episódios sobre sérvios, poloneses, italianos e russos - por exemplo - captariam os muitos imigrantes vivendo por lá? Quem já foi ao US Open sabe o quanto esses grupos se envolvem e torcem por seus compatriotas.

A conclusão inevitável

Break Point foi uma série mal editada, com episódios arrastados, dramas forçados e até erros gravíssimos em sequências de pontos (vejam o triste trecho sobre a final feminina do Australian Open no primeiro episódio da segunda temporada). Talvez, porém, tivesse sobrevivido a esses problemas se não tivesse que lidar com o que nós, fãs de tênis, precisamos enfrentar no dia a dia para acompanhar o esporte. No fim das contas, o poder autodestrutivo do tênis foi mais forte.

Coisas que eu acho que acho:

- Em modalidades sem os problemas do tênis, séries semelhantes avançam. Drive to Survive já soma seis ótimas temporadas, Full Swing (golfe) está na segunda, com números muito melhores do que Break Point, e a recém-lançada Full Speed (Nascar) foi elogiadíssima. Last Dance, que reviveu a dinastia do Chicago Bulls de Michael Jordan, também foi um estrondoso acerto.

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- Quando vi a primeira temporada de Break Point, não gostei dos episódios, mas dei certo crédito. Acreditei simples e talvez ingenuamente que a série não era feita para gente como eu (incluído entre os fãs hardcore) e, por isso, seria normal eu não gostar. Errei.

- Felizmente, o tênis vai saindo de uma geração assombrosa que teve Federer, Serena, Nadal e Djokovic, e vê chegando nomes cativantes como Alcaraz, Iga, Sinner e Sabalenka. Só eles e seu talento sobrenatural conseguem superar a kryptonita que brota eternamente nas catacumbas do tênis.

- O Netflix Slam, exibição entre Rafael Nadal e Carlos Alcaraz realizada na última semana em Las Vegas, foi um sucesso. Um evento bem produzido, com comentários de alto nível (Andy Roddick, Andre Agassi e Jim Courier, entre outros, estavam envolvidos) e tênis bem jogado. Mostra que a Netflix tem interesse na modalidade e estuda como fazer dinheiro com isso. Só não será com Break Point.

- Som de hoje no meu Kuba Disco (fazia tempo, não?): Luna de Sangre, do último e ótimo álbum dos espanhóis do Mago de Oz. "Tráeme calma, luz del alba".

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Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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