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Paciaroni, parte I: um começo contra vaidade, insegurança e cãibras

Divulgação/RTB
Imagem: Divulgação/RTB

Rafael Paciaroni

Técnico de Beatriz Haddad Maia

24/04/2023 04h00

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Poucas pessoas sabem do início da nossa parceria (minha e da Bia) em detalhes. E acho que o início diz muito sobre ela, Bia, sua resiliência e sua sabedoria; e sobre mim, meu lado sonhador, e do trabalho duro sem atalhos ou maquiagens.

Nos reencontramos em Portugal, como muitos sabem. Era um torneio 25k na cidade do Porto, Portugal, logo no início da reabertura dos países europeus "pós pandemia". Eu estava ali acompanhando os jogadores que treinava na época (Matheus Pucinelli e João Reis da Silva) quando cruzamos com a Bia em um dos corredores do clube. Nos dias seguintes ela acompanhou os treinos e os jogos dos então meninos Matheus e João. Neste meio tempo falamos bastante sobre tênis, processos e a vida até que fomos eliminados (Matheus e João) do torneio e tivemos que nos despedir para seguir viagem até Setúbal, local do próximo torneio masculino.

Oito dias depois chegaria uma mensagem da Bia para mim perguntando se eu voltaria para SP após o torneio de Setúbal (era minha sétima semana em Portugal) e eu respondi que sim. Pensava que ela me solicitaria alguma ajuda para levar roupas ou materiais de volta para SP (algo bem normal em nossa rotina); porém fui surpreendido com o tema da mensagem, que era me convidar para seguir em Portugal com ela e com a Ingrid Martins nos próximos três torneios que teriam por lá. Pedi autorização ao sábio João Zwetsch, diretor técnico do RTB no momento, e ele me liberou imediatamente para permanecer por lá. Jogamos a primeira semana na Ilha da madeira onde a Bia foi campeã e a Ingrid fez semifinal. Após o término do evento, a Bia relatou muitas dores no dedo da mão esquerda e, ao realizar um exame de imagem, foi diagnosticado um pequeno tumor que ela precisaria operar e ficar quase dois meses sem competir. Uma ducha de água fria para ela, que estava voltando a competir depois de muito tempo (suspensão + pandemia), e para mim, que estava desfrutando de cada minuto de novos aprendizados.

Ainda em Portugal, nos preparando para voltar ao Brasil, a Bia me chamou para conversar e me fez o convite para ser seu treinador na temporada de 2021. Ela me disse que praticamente todas as pessoas com quem conversou (com exceção de alguns familiares, em especial a sua tia Telma, a qual me conhecia dos tempos em que trabalhei no ECP, em São Paulo) eram contrárias ao meu nome; pessoas de todos os níveis de proximidade e pessoas com muita experiência e relevância no meio do tênis disseram que ela estaria perdendo um tempo precioso na carreira ao me escolher. A Bia se manteve firme em sua escolha e assim começava oficialmente a nossa parceria.

A cirurgia foi um sucesso. Tínhamos agora um período longo de recuperação pela frente. E me preocupava muito o fato dela estar novamente "parada" em SP. Como equipe, traçamos um plano que envolvia evoluir fisicamente neste período; aumentar o nível de compreensão tática sobre o que o tênis moderno exigiria dela para voltar ao top 100 e ir além (sacar e devolver agressivamente; um posicionamento mais agressivo em quadra, ou seja, cortar espaços e tirar o tempo das adversárias; estar constantemente dentro de quadra); melhor utilização do braço direito (que estava liberado para treinar) e que iria ajudar na evolução do golpe de backhand; um toss mais dentro da quadra para colaborar com um saque mais potente e agressivo; e concomitantemente a isso, um assunto me intrigava bastante: o número de partidas com câimbras ao longo da carreira.

Após treinarmos apenas uma semana de quadra em SP (sendo que três dias foram com bolas verdes (25% mais lentas que as bolas amarelas) devido à progressão da carga de trabalho para o dedo operado, decidimos viajar para os torneios 25K da África do Sul. Embora não tivéssemos treinado, nos preparado técnica e taticamente para competir em bom nível (o que poderia nos trazer resultados ruins para um início de trabalho e automaticamente desconfiança sobre as minhas propostas), eu tinha clareza de que psicologicamente seria importante para ela estar no meio da competição após mais uma parada e tanto tempo em casa (para dar certo nessa profissão, a mochila precisa estar constantemente nas costas).

Chegamos à África do Sul e no primeiro jogo do quali a Bia vence 12x10 no super tie-break, salvando um match point contra uma jogadora africana sem ranking. No jogo seguinte, uma vitória onde foi pouca exigida e o quali estava "furado". O sorteio das chaves trouxe outra brasileira como desafio na primeira rodada: Carol Meligeni. E eu sabia que esse jogo psicologicamente seria o mais complicado para a Bia no torneio, pois é sempre desafiador duelos nacionais, ainda mais entre jogadoras que possuem a mesma idade, que dividiram quadra tantas vezes e que se conhecem bem. O motivo, a meu ver, deste fator extra de complicação, é a vaidade. Não só. A Carol vinha treinando bem e estava preparada para o desafio (acho que ela nunca havia vencido a Bia até aquele dia). Se não me falha a memória, o jogo começa e a Bia faz 4x1 jogando um bom tênis. Minutos depois, o set estava no tiebreak. Bia venceu 7x6. Começa o segundo set 1x0 para a Bia quando ela começa a não correr nas bolas e a andar com dificuldade. Após alguns pontos assim, ela vira para mim com um olhar apavorado e diz "estou sentindo câimbras"; eu respondo "sem problemas; este tipo de câimbra passa; já vivenciei este cenário antes; segue jogando". Minutos depois: 6x2 para a Carol. Terceiro set começa e a Carol abre 2x0. O jogo para 30 minutos devido a raios na região. Era o nosso (meu e da Bia) primeiro torneio oficialmente juntos, mas eu enxerguei ali uma oportunidade de começar o trabalho corretamente e mostrar para a Bia por que eu colocava minha mochila nas costas. Nesta pausa, eu disse para ela:

"Eu te estudei muito para chegarmos aqui hoje. Suas câimbras anteriores nunca tiveram uma relação entre elas. Você teve problemas em local úmido, em local seco, nível do mar, altitude, com pequena duração do jogo, média duração, contra adversárias que jogam rápido, adversárias que jogam com volume, ou seja, não é fisiológico. Você não está usando nenhum medicamento que pode causar câimbras; seus exames todos (que fizemos para a pré-temporada) mostram que não há defasagem de algum nutriente; não possui problema ortopédico; ou seja, Bia, a tensão vem de se pressionar muito e estar com os pensamentos errados na cabeça (foco no resultado e não no processo). Ou seja, Bia, essa câimbra é oriunda da fórmula do fracasso: insegurança alta + vaidade alta. Portanto, não me interessa onde você está com câimbra, você vai voltar para essa quadra, terminar o jogo, bater na mão dela, dar os parabéns pois ela é muito trabalhadora e merecedora e depois faremos juntos um exercício."

O jogo retorna, Carol faz 5x2, Bia busca 5x5 e erra oito bolas seguidas. 7x5 Carol, cumprimento na rede. Procurei uma árvore (o dia já estava lindo outra vez), pedi para a Bia se sentar; pedi para que ela abrisse o seu celular e que juntos olharíamos todas as mensagens que ela recebeu sobre o jogo, todos os comentários que estavam escrevendo sobre ela nos sites de tênis, no Instagram, entre outros, após a derrota. Mostrei que se receber elogios era um combustível importante para seguirmos firmes no caminho adiante, precisaríamos conviver abertamente com as críticas. Porém, lembrei que, infelizmente, o cérebro humano valoriza muito mais o lado negativo que o positivo. Por exemplo, se tenho um milhão de reais e faço um investimento e meu patrimônio vira dez milhões, fico muito feliz. Resolvo seguir em frente e tentar fazer os dez milhões virarem vinte, mas fracasso e os dez milhões viram quatro milhões; para o nosso cérebro, não importa se tínhamos um e agora temos quatro (lucro). Importa que tínhamos dez e agora temos quatro. Ou seja, é necessário um trabalho para desconstruirmos esses pensamentos e passarmos a lidar melhor com os desafios do caminho. E este caminho, para ser bem trilhado, é preciso se expor, assumir riscos, focar no processo e se blindar daquilo que não agrega nada ao dia a dia; ou seja, é preciso trabalhar mais e consumir menos; é preciso caminhar na direção do "mono foco". A Bia escutou tudo atentamente, um pouco assustada, com os olhos com lágrimas, mas não questionou uma vírgula e no dia seguinte estávamos cedo em quadra, construindo o novo caminho.

Dois dias depois deste jogo, o Paulo Cerutti (fisioterapeuta da Bia) testou positivo para covid e como estávamos dividindo quarto, tanto ele quanto eu, tivemos que ser evacuados do hotel em ambulância privada e ficamos 10 dias em um quarto individual de três metros quadrados sem ter acesso a qualquer outra pessoa a não ser enfermeiros que vinham às 6h da manhã todos os dias para nos avaliar (vestidos em roupas que lembram astronautas). Ou seja, não pude trabalhar nada com a Bia nesta segunda semana de torneios e apenas fui liberado da quarentena para encontrá-la diretamente no aeroporto, onde tínhamos passagem comprada para dois torneios 25K nos EUA. A Bia, nessa semana, perdeu na segunda rodada, e eu pude ver os jogos do meu minúsculo quarto através da transmissão por streaming.

No primeiro torneio dos EUA, a Bia fura um forte quali de um 25K (os torneios estavam muito duros nesse retorno "pós pandemia") e perde na primeira rodada após ter vencido o primeiro set e estar break acima no segundo. Derrota dura após um início de jogo com claros indícios de evolução. Com mais trabalho duro, fomos a um torneio na Califórnia na semana seguinte, no qual a Bia chega às semifinais de um torneio 25K e perde para a Claire Liu tendo um match point a favor. Mais uma derrota dura, mas com claros indícios de evolução.

Voltamos a Miami, onde treinaríamos uma semana e seguiríamos para três torneios 25K na Argentina. No primeiro dia off (um domingo) que antecedia essa nova viagem, eu me acidentei gravemente de mountain bike e fiquei mais de dois meses com o braço totalmente imobilizado, correndo riscos sérios de sequelas graves (cheguei a perder todos os movimentos do braço e não sentir mais o toque/sinestésico em algumas regiões que ficaram completamente pretas devido aos edemas). Decidi que voltar para casa não era uma opção para mim e que precisava mostrar a Bia os sacrifícios que precisaríamos fazer para alcançarmos nossos sonhos traçados (naquele ano era voltar ao top 100).

Viajamos para a Argentina. Bia furou um bom quali, porém, fez um jogo muito emocional na primeira rodada da chave e perdeu. Fomos para a quadra. Exposição. Verdade. Vaidade baixa. Trabalho duro. Semana seguinte, outro 25K, ela faz uma primeira rodada muito dura, irregular, e vence. A partir dali ela ganha os dois torneios (Villa Maria e Córdoba) e estávamos a caminho da Europa para jogar um torneio 60K (o maior desde o retorno dela as quadras) e que valia a classificação para o quali de Roland Garros.

Chegamos em Lisboa em uma terça-feira (a logística de Córdoba para lá em tempos de pandemia era terrível) por volta das 16h. O jogo dela estava marcado para aquele mesmo dia por volta das 18h. Para "ajudar", a Bia havia esquecido suas raquetes no ônibus de Córdoba para Buenos Aires e tinha apenas uma raquete com ela (em sua mochilinha de mão). Com muita ajuda do presidente da Federação Portuguesa de Tênis, o Vasco, conseguimos uma raquete de emergência para a Bia (com aparentemente as mesmas características - cada jogadora tem sua própria customização). Bia vence o primeiro set 6x4. Tem break acima no segundo e perde o set. Jogo interrompido no terceiro set com 4x2 para a adversária (que naquele momento era 470 da WTA mais ou menos). No dia seguinte, a partida é concluída e a Bia é derrotada. Vaga para o quali de RG perdida. Na semana seguinte, mais um torneio em Portugal e nova derrota para a Carol. A Bia volta a receber mensagens de pessoas relevantes no tênis nacional dizendo que ela estava equivocada em me ter como treinador.

Cinco meses depois, após perdermos na última rodada do quali de Wimbledon 2021, estávamos de volta ao Brasil, meu braço ainda com sequelas (hoje recuperei 90% dos movimentos), ainda distantes do top 100, mas cheios de energias, aprendizados e uma enorme confiança no processo diário que estávamos construindo.

De lá para cá foram 17 finais juntos (simples e duplas): incluindo uma final de Grand Slam, 4 finais de master 1000 e 4 títulos de WTA.

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O texto acima é de autoria de Rafael Paciaroni, técnica de Beatriz Haddad Maia, atual número 14 do mundo. Rafael me recebeu em sua casa na última segunda-feira, para uma entrevista, e conversamos por muito mais tempo do que o esperado (pelo menos por mim). A ideia era mostrar a vocês, leitores, quem é o homem que levou Bia ao top 15, e o resultado será bem mais do que isso.

Nas cerca de 4h do nosso papo, Paciaroni relatou sua formação e suas experiências anteriores como treinador; contou histórias que vão ilustrar os porquês do sucesso de Bia; mostrou os livros que o influenciam; falou sobre Buda e Abel Ferreira, samba e rock, vaidade, sonhos e redes sociais, com seus elogios e críticas. Contou como Bia se transformou, sua relação com pressão e expectativas, seu conservadorismo como adversário e o que ainda separa a brasileira de feitos maiores.

Este post foi a primeira parte de uma série de quatro posts que publicarei esta semana com o conteúdo dessa entrevista. Garanto que, assim como no caso das cãibras de Bia relatado acima, ficará fácil entender vários aspectos da trajetória recente da paulista e os porquês de sua ascensão. E será muito, muito simples compreender por que Paciaroni vem calando os críticos dia após dia.