Olhar Olímpico

Olhar Olímpico

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
ReportagemEsporte

Edinanci decidiu se aposentar após Mayra vencê-la em joguinho de computador

Em uma era pré-smartfones e de dificuldade de conexão à internet sem fio, joguinhos de notebook eram ótimos para passar o tempo. Na Vila Olímpica de Pequim-2008 não era diferente. E um deles, um canhão que apontava bolinhas coloridas para se chocar com outras da mesma cor foi decisivo na decisão de Edinanci Silva se aposentar.

"Eu chegava em determinada pontuação e não passava. A Mayra [Aguiar] chegou e passou de primeira", lembra a judoca. Era uma analogia com seu grande objetivo: uma medalha olímpica.

"Deu meu tempo, o máximo que eu posso construir é isso daqui, não posso ficar insistindo. Eu estava fora do tempo. Eu e a Mayra, a gente dividia um quarto, e enquanto eu ficava enfurnada no quarto, ar super ligado, cheia de casaco, parecia o Senhor dos Anéis, sentindo muito frio, a Mayra andava normal. Ela estava confortável, eu não", continua.

Havia ali um choque de gerações. Enquanto Edinanci, então com 32 anos, disputava a quarta Olimpíada na categoria até 78kg, Mayra, uma subdivisão abaixo, estreava aos 17. Se a veterana sonhava com uma medalha, era na China ou nunca mais.

"'Importante é participar', isso é lenda, não existe. Quando você cai lá dentro, é outra história. Quando saí de 2008, saí com essa convicção: não vou conseguir melhorar seu resultado. Eu vi que eu já estava ali fazendo hora extra e estava chegando alguém que poderia construir algo bem maior do que eu vinha construindo", diz, se referindo, claro, a Mayra, que ganhou três bronzes nas três Olimpíadas seguintes.

Faz parte do ciclo natural do esporte. Houve uma Edinanci antes de Mayra, como houve outras antes de Edinanci, que se aposentou com um quinto lugar em Pequim, derrotada na luta da medalha, depois de três sétimos lugares.

"Eu sempre fui muito preocupada com a origens, saber quem esteve ali, e por que estavam ali. Soraia André, Mônica Angelucci, sensei Solange Pessoa, eu vi revolução por parte delas. O que me interessa é o que elas fizeram pela modalidade. A Monica por ter despertado o interesse da imprensa, conquistado patrocínios. A Soraia por pintar judogi de preto e ir para frente da TV protestar para poder lutar. A sensei Solange, a gente passou por situações constrangedoras, e ela sempre acreditou que era possível. O que me importa é a atitude da pessoas." Solange recentemente se tornou a primeira mulher a alcançar a gradução de 8º Dan no Brasil.

Pós-carreira

Edinanci deixou a seleção brasileira em 2008, mas só parou de competir mais de uma década depois. Longe dos holofotes, seguiu defendendo São Caetano do Sul (SP) em competições, como os Jogos Regionais e os Jogos Abertos do Interior,.

Continua após a publicidade

Quando estava "desacelerando" do judô, em 2013, chegou a entrar em uma faculdade de Educação Física — o UOL contou na época. Mas a experiência foi traumática. Ela conta:

"Meu conhecimento sempre foi precário, ele vem de vivência. Só que quando você entra na sala de aula, tem que ter o conhecimento teórico. E aí é mais do mesmo: se você não se encaixa, você fica para trás. Lembra que teve um caso em Bauru, uma mulher de mais idade que sofreu precoceito de adolescentes? Eu sofri a mesma coisa. Pessoas com idade avançada em sala de aula sempre sofreram esse preconceito. Caí de cabeça, comprei livro, ficava dentro da biblioteca até altas horas, mas é duro. Uma vez, bati boca com uma aluna: 'Você é privilegiada, só porque foi da seleção acha que vai ter nota boa. O professor passa pano para você', ela me disse. Aquilo mexeu de vez com meu psicológico. 'Será que essa nota foi mérito meu ou foi do cara lá que levou em consideração que sou do esporte? Eu ia para competição e, nos intervalos de luta, ficava lendo livro de anatomia no último lance de arquibancada... mas eu broxei e larguei."

Naquele ano, 2013, ela ainda foi campeã brasileira.

Uma professora de vida

Sem um diploma universitário, Edinanci não tem registro no Conselho Regional de Educação Física e não pode, em tese, trabalhar como técnica de judô. Mesmo sendo uma sensei de sexto Dan, uma Kodansha de faixa coral.

Edinanci não se importa. O lugar dela no mundo é trabalhando em iniciação no judô, em projeto social. "Para o que eu faço, é clichê o que eu vou falar, mas a faculdade da rua é a melhor faculdade da face da Terra. Pode pegar o professor que se formou, tem doutorado, e colocar dentro de um projeto social para comandar aquela molecada, e se ele não tiver isso daqui [gana], ele não fica uma semana."

Continua após a publicidade

A ex-judoca trabalhou na equipe de São Caetano, que defendeu a maior parte da vida como atleta, foi professora em academias, e vinha trabalhando na unidade do Instituto Tiago Camilo em Paraisópolis, bairro favelizado na zona sul de São Paulo. Deixou o cargo por conta de problemas físicos, sequelas de uma longa carreira no judô.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes