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Mãe em 1ª viagem, Erica Sena busca vaga olímpica com bebê a tiracolo

Erica Sena e o filho, durante pódio de prova na Europa - Reprodução/Instagram
Erica Sena e o filho, durante pódio de prova na Europa Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

13/05/2023 04h00

A mulher brasileira que está mais perto da classificação olímpica no atletismo também é uma mãe que dorme pouco, treina mal e precisa intercalar as atividades profissionais com a rotina de lactante. Mãe de um garoto de (quase) 11 meses, Erica Sena conta, neste relato em primeira pessoa, como está sendo a aventura de buscar uma vaga olímpica na Europa levando um filho a tiracolo.

Quem é atleta sabe que tem dia que a campainha toca antes do despertador. Quando isso acontece, é o controle antidoping que está batendo à porta, para um exame surpresa. Faz um ano e meio, porém, a surpresinha veio só depois do teste: um sangramento. Procurei minha ginecologista e, naquele dia, descobri que minha vida iria mudar para sempre.

Hoje, acordar com despertador é que é surpreendente. Todos os dias, ou melhor, todas as noites, quem me tira da cama é o Kylian, um bebê topetudo, meio brasileiro, meio equatoriano, que no domingo (12), no meu primeiro Dia das Mães, vai completar 11 meses de vida.

Quando eu soube que estava grávida, avisei imediatamente o COB (Comitê Olímpico do Brasil) e a CBAt (Confederação Brasileira de Atletismo), que só me perguntaram se eu pretendia voltar a competir. Respondi que sim, e eles disseram que então nada mudava, e eles continuariam me apoiando com sempre, o que de fato aconteceu.

Nos meus sonhos, o Kylian continuaria dormindo bem à noite, como era nos primeiros quatro meses, e, agora que está na fase de introdução alimentar, revezaria o peito com fórmula, e eu poderia ir descansada aos treinos e competições. Quem é mãe e pai sabe: a gente cria expectativas para elas serem frustradas. Pois bem: o Kylian acorda a noite inteira, quer ficar o tempo todo no peito e não aceitou a fórmula.

Desde que eu voltei a competir, entro sempre insegura nas provas, porque meus treinos são uma montanha-russa. Não tenho um mesociclo de treinos bons. É sempre um muito bom, seguido de um muito ruim. Ou um bom, depois um mais ou menos e um treino horrível.

Quando ele dorme bem, eu treino superbem. Mas, quando ele acorda um milhão de vezes por noite, são aqueles treinos que não consigo fazer nada, sabe? Queria estar treinando mais forte, se estivesse descansando melhor, o que não é o caso.

No começo eu ficava triste, me cobrava muito. Eu não dormia, a noite era péssima, não conseguia fazer o treino como tinha que fazer, chorava, ficava triste, vinham mil besteiras na cabeça. Pensava em parar, me perguntava 'por quê estou fazendo isso?'.

Mas depois eu disse: 'Estou fazendo tudo errado. Eu não tenho que me cuidar agora, a prioridade é ele, o resto é bônus'. Se eu dormir, descansar bem, que bom. Se não, eu faço como der. É o que está funcionando para mim agora.

A verdade é que é muito duro conciliar a vida de mãe e atleta. São muitas noites sem dormir, sem poder descansar, sem recuperar para o dia seguinte. Mas também é verdade que eu amo viver tudo isso. É difícil, é duro, mas é incrível!

A atleta virou mãe

Quando eu descobri a gravidez foi uma mistura entre felicidade e preocupação. Felicidade porque eu sempre sonhei ser mãe, mas pensava: e agora como ficará minha carreira de atleta? Eu estava com 36 anos, e ainda tinha (e tenho) a meta de ser medalhista mundial e olímpica na marcha atlética. Fui quarta colocada nos Mundiais de 2017 e 2019, e sétima na Rio-2016.

Moro no Equador, com meu marido e treinador Andrés Chocho, que também é atleta. Juntos decidimos que eu iria voltar a competir sem pressa, sem cobranças, com o objetivo claro que são os Jogos Olímpicos de Paris, quando eu terei 39 anos.

Tive uma gravidez tranquila, exceto pelo susto do sangramento logo no início, que me fez descobrir que estava grávida, e pelas dores nos pés mais para o final. Como eu sou magrinha e engordei 15 quilos, meus pés doíam muito com o sobrepeso. E eu dependo dos meus pés para trabalhar.

Quando estava grávida, tive muitos medos. Por uma decisão minha e do meu esposo, optamos por nos preservar e não anunciar publicamente a gravidez. Eu tinha muita vontade de sair contando para os quatro cantos, mas fiquei receosa, com medo, e preferi viver esse momento para mim. Quando me senti mais confortável, resolvi falar, já no oitavo mês. Deu algumas semanas, e nasceu o bebê.

O COB e a confederação nunca deixaram de apoiar, e minha preocupação era com o Ministério da Cidadania (hoje Ministério do Esporte). Como a Bolsa Pódio considera o resultado alcançado e a expectativa de resultado futuro, eu poderia ficar sem bolsa em 2022, por não estar treinando, e em 2023, por não ter tido resultado em 2022. [NR: o caso foi denunciado pelo Olhar Olímpico, leia aqui]. Graças a Deus fizeram uma reunião e decidiram que iam manter minha bolsa.

Agora as mamães não vão mais precisar se preocupar com isso, já que a Câmara dos Deputados aprovou que a bolsa de quem engravidar fica mantida. Fiquei muito feliz em saber que de alguma forma pude contribuir para que futuras mamães possam estar tranquilas e aproveitar esse momento, sabendo que vai voltar e vai receber seu benefício, que não vai ser prejudicada por ter tido um filho.

Voltando aos treinos

Durante a gravidez, eu continuei treinando, treinei até o ultimo dia antes de o Kylian nascer. Eram treinos tranquilos, já que eu não podia fazer muita coisa. Como o parto foi cesárea, senti muitas dores na recuperação, e parei de me preocupar com treino. Só quando ele tinha dois meses eu comecei a sair de casa.

Durante o meu puerpério, eu nem pensava em voltar a marchar, eram tantos medos... Eu tive que ficar praticamente sozinha em casa com o bebê recém-nascido, já que meu esposo teve que viajar para competir no Campeonato Mundial. Eu tentava me concentrar ao máximo no bebê, em como trocar fraldinha, como cuidar do umbigo, eu tinha muitas coisas para pensar. A única coisa que eu não pensava era em voltar a treinar.

Quando eu voltei para a pista, eu achava que seria mais fácil se classificar para o Mundial na prova de 35 quilômetros, que eu me sentia mais confortável, marchando em um ritmo que eu poderia aguentar por mais tempo. Nos 20km, o índice é muito forte, abaixo de 1h30min.

Mas, para se classificar, eu teria que pegar uma sequência de competições, todas nas Europa, e seria complicado ficar indo e voltando com bebezinho. Então viemos eu, ele, meu marido e minha irmã, para ficarmos quase três meses. Ela me ajuda para eu poder treinar um pouco melhor. São dois braços a mais para segurar ele. Sem minha irmã, seria impossível a minha vida.

A gente tentou incluir fórmula na alimentação dele, para dar uma facilitada, mas esse senhorzinho não aceitou. Seria um pouquinho mais fácil, porque eu não teria que ficar tirando leite, mas não foi o caso. É tira leite, congela leite, descongela leite, esquenta leite. Tira leite, congela leite... No começo, eu tirava com uma bomba elétrica que você fica presa, tirando leite. Depois, comprei uma portátil, que carrega com o USB, e dá até para tirar leite marchando se quiser.

Também tem a questão da comidinha dele, que não pode ter sal, não pode ter açúcar. Ainda bem que o pessoal daqui do CT de Portugal, em Rio Maior, é super gente boa, e está fazendo a comidinha dele. Isso me dá uma ajuda enorme.

Quando tem competição, minha irmã dorme com ele nas duas noites anteriores, para eu poder descansar mais. Mas, se a prova é à tarde, me complica. Como ele ficou sem mamar a noite toda, eu acordo com o peito bem bem cheio, e tenho que ficar tirando leite direto. Quando a prova é de manhã, é só tirar o leite e ir competir.

As competições

Desde que chegamos na Europa, eu competi três vezes. A primeira foi em Dudince, na Eslováquia, na prova de 35 quilômetros. Fui quinta colocada, com 2h47min59s, um tempo que é índice para o Campeonato Mundial de Budapeste.

Depois, competi duas vezes nos 20 quilômetros. Fiquei em segundo na Polônia, e em sexto aqui em Rio Maior, em Portugal, baixando de uma hora e meia. Mais exatamente 1h29min48s, a 28 segundos do índice para as Olimpíadas de Paris, que é fortíssimo. Desde os Jogos de Tóquio, há quase dois anos, só 24 atletas conseguiram, a maioria são chinesas (seis) e russas (cinco).

Eu já vi várias histórias sobre mulheres que melhoram sua performance esportiva depois de ter bebê, pela alteração hormonal. Eu ainda não melhorei meus resultados, mas em todas as competições eu saí achando que poderia ter me saído melhor. Todas as vezes fui controlando o ritmo, e sei que poderia ter feito muito mais forte, o que vai acontecer aos poucos.

Quando o Kylian tiver um aninho, talvez ele possa descansar um pouco mais de noite, eu possa dormir melhor, e isso vai refletir nos resultados. Por enquanto, não tenho nenhum objetivo esse ano, mas não posso deixar de admitir que, depois dessas competições, estou querendo sempre mais.

Eu ainda vou competir mais uma vez antes de voltar para o Equador, daqui a três semanas, em La Coruña na Espanha, e, como eu consegui boas pontuações na Polônia e em Portugal, mais um bom resultado me deixa muito perto das Olimpíadas pelo ranking de pontos. Mas, de repente não sai um índice, né? Para já garantir a vaga e dar maior segurança. Seria um baita presente de um aninho para o Kylian — e, claro, para a mamãe de primeira viagem.