Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Sob muitos aspectos os dois amistosos europeus da seleção foram um fracasso

O Brasil ganhou da Inglaterra e a euforia tomou conta. Voltamos! Jogamos mais ou menos, mas não importa. Importa vencer. Quem ganha, lucra. E a CBF está nesse negócio: o do lucro.

Contra a Espanha, um empate que tem sido comemorado por muitos como se valesse três pontos em Copa do Mundo a despeito do baile levado no primeiro tempo. Endrick é gênio, berram todos sem questionar o absurdo de um atleta como ele sair do Brasil aos 18 anos para, quem sabe, voltar no fim da carreira. A perda de jovens craques geniais está absolutamente naturalizada.

Nada disso vem ao caso, a CBF parece não ter rigorosamente nada a ver com esse tipo de colapso. O que está em jogo é a marca e sua capacidade de engajar patrocinadores. Nesse âmbito, a CBF é um sucesso estrondoso. Empresa privada bilionária.

Teríamos que sair da lógica liberal que enquadra como vencedores aqueles que têm muito dinheiro e como perdedores aqueles que não chegaram lá para compreender o que é a CBF e o que ela representa para o futebol brasileiro.

Qual é o negócio em que a empresa CBF atua?

O negócio da CBF é a cultura. A cultura do futebol, essa que nos é fundante nessa nossa nação. Dentro dessa cultura, a CBF está despreparada para entender o que nos forja enquanto filosofia de jogo, o que envolveria pensar em uma escola de futebol que representasse em campo o que somos nas artes, e também despreparada para falar das coisas que importam para formar sujeitos: racismo, machismo, misoginia, LGBTfobia.

Completamente despreparada.

Uma empresa feita por homens para homens organizada pela lógica liberal e movida para o lucro. A CBF tem hoje em seus caixas cerca de um bilhão de reais. Dinheiro a serviço da classe capitalista. Dinheiro parado. Dinheiro que rende mais dinheiro para os mesmos de sempre. Enquanto isso nossos craques saem antes dos 20 anos, os gramados são horrorosos, não temos educação humanitária para a base.

Não há representatividade no corpo diretor da empresa. Não há o menor vestígio de entendimento de pautas sociais. Há homens de terno e gravata interessados no lucro que acreditam que questões sociais podem ser resolvidas pelo departamento de comunicação e marketing.

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O treinador da seleção, por duas vezes em entrevistas sobre casos de racismo e estupro já estabelecidos como tais, disse "se houve um crime...". Errou dois dias seguidos sem que existisse uma pessoa para prepará-lo, educá-lo, corrigi-lo.

A CBF jogou Vini Jr sozinho na coletiva para rebater no peito, só ele sabe a que custo, o racismo que sofre na Espanha. Não é apenas errado; é perverso.

E por falar em Espanha, a CBF foi até a Espanha jogar mesmo diante de toda a omissão que o país vem adotando em relação aos casos de racismo contra Vini Jr.

A CBF escolheu a Espanha. Aí, imaginamos que - talvez quem sabe - a empresa que comanda o futebol brasileiro fosse desembarcar e desfilar por lá contundentes ações antirracistas. Não. Não teve nada disso. Teve a coletiva de VIni, um erro, teve um agasalho todo preto, teve videozinho com mensagem clichê com o nome dos patrocinadores bem estampados no final.

"Uma só pele", dizia o vídeo. Como assim "uma só pele"? É justamente por não ser "uma só pele" que tudo isso está acontecendo. Quem não vê raça não pode ver racismo. E temos aí um imenso problema logo de cara.

Um pingo de letramento faria a CBF compreender coisas bastante básicas a respeito do que é o Brasil e de como deveria agir para não passar vergonha. Ainda mais grave: para não expor um jovem como Vini Jr ou ofender todas as mulheres revelando que a empresa simplesmente não sabe o que dizer sobre seus atletas condenados por estupro. Precisou Leila Pereira ter a coragem de falar contundentemente sobre a condenação de Robinho para só então a CBF sair correndo e preparar um texto a respeito da violência contra a mulher.

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Me desculpem os mais emocionados com esses dois amistosos, mas eu não consigo separar o que aconteceu nas coletivas e nos bastidores com o futebol que vimos em campo. E, a bem da verdade, se melhoramos em competitividade não é sequer possível dizer que jogamos bem. Jogamos para o gasto e isso, para uma seleção que ainda se acha a maior do planeta, é bem pouco. Bem - bem - pouco,

A CBF precisa se preparar para gerir seu verdadeiro negócio: a cultura, os afetos e as relações que são mais importantes para o futebol do que vencer compactuada com abusadores e deixando alguns dos nossos, e algumas das nossas, pelo caminho.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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