Milly Lacombe

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Prêmio de melhor preleção do ano vai para Fernando Diniz

O Fluminense colocou nas redes sociais a preleção de Diniz para a semifinal contra o Al Ahly e o vídeo de oito minutos é uma preciosidade. O trabalho feito pelo Fluminense em redes sociais é elogiável em muitos aspectos, mas dessa vez ele se superou. Nem tanto pela qualidade de imagens e edição, mas pela força e beleza do que disse Diniz aos jogadores antes do time entrar em campo.

"Vocês estão prontos para encantar o mundo? Não tenham medo, não tenham vergonha dessa porra. É abraçar essa chance. É pro mundo inteiro. É a reabilitação da favela do Brasil. Da pobreza do Brasil. [É contra] o racismo que tem no Brasil. [É contra] A exclusão social. Não tenham receio. Vocês treinaram a vida inteira para isso."

Em um manifesto de dois minutos, talvez nem isso, Diniz traçou um retrato social do Brasil e do papel do nosso futebol nesse contexto. Um país que não se envergonha de homenagear ditadores com nome de estrada e genocidas em estátuas mas que criminaliza favelas e periferias, que criminaliza pobres, que criminaliza excluídos.

"Bandeirantes, Anhanguera, Raposo, Castelo
São heróis ou algoz? Vai ver o que eles fizeram
Botar o nome desses cara nas estrada é cruel
É o mesmo que Rodovia Hitler em Israel"

(Salve Grupo Inquérito)

Tudo na preleção de Diniz foi comovente e cheio de simbolismo.

Digo sem medo de errar que o Dinizismo é mais do que um sistema tático contra-hegemônico e revolucionário; é um modo de estar no mundo, uma forma de se relacionar e de conviver. Diniz e Dinizistas são constantemente criticados pela forma supostamente pouco competitiva com que encaram o jogo. Há sim coisas mais importantes do que vencer, mas nesse mundo tão violento e cínico, impregnado pela lógica empresarial e pela eliminação da concorrência, manifestos como esse são tirados de ingênuos, de românticos, de irrealistas.

O capitalismo funciona porque inverte as narrativas e assim faz heróis se tornarem vilões e vilões serem celebrados. Um país que, numa dessas inversões, é narrado como tendo sido descoberto. Não fomos descobertos. Fomos invadidos. Ocupados. Triturados. Explorados. "Não havia nada ali", diz o discurso colonialista porque assim fica mais fácil invisibilizar o extermínio que se seguiu ao "descobrimento". Como não havia nada aqui? Havia aqui línguas, amores, cultura, saberes. Havia povos, havia vidas. Nossa história não começa com o colonizador nem com a escravização de milhões de seres humanos sequestrados de África. Começa antes, milhares de anos antes.

Essa mesma inversão da lógica faz com que chamemos o regime político atual de democrático como se pudesse ser democrático que haja direitos civis em Higienópolis mas não em Paraisópolis.

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No primeiro bairro, quando a polícia vai prender um suspeito de tráfico, ela entra pedindo licença com um mandado de busca, não mata ninguém. O suspeito é levado para depor e depois liberado. Contrata advogados, defende-se por anos (no caso de haver uma acusação formal, coisa que muitas vezes nem há) e, no final dessa história, acaba inocentado.

No segundo bairro, a polícia entra atirando e matando quem estiver pela frente, sem mandado nenhum, apenas seguindo um padrão de décadas que chama a matança hipocritamente de combate às drogas. Quem não morre vai preso sem direito a uma defesa decente. Quase 40% da população carcerária brasileira, de maioria negra e periférica e detida por porte de quantidades de droga que nunca levou um branco remediado em cana, não foi sequer julgada.

A maior parte de nossos jogadores vêm exatamente desse contexto periférico. São jovens sobreviventes das balas da polícia e das milícias. São a exceção. Então, quando Diniz traz para a preleção essa realidade incontornável ele introjeta consciência de classe e de raça no grupo. É uma força de magnitude incalculável, única que pode mudar a sociedade de fato.

Escrevo esse texto antes da final para deixar registrado que vencer ou perder do City não é o valor primordial que está em jogo no Dinizismo. Se digo isso depois de uma derrota vão me acusar de demasiadamente Dinizista - coisa que sou com muito orgulho - e de estar buscando desculpas.

É que existem outros movimentos que foram colocados em circulação por Fernando Diniz nesse Fluminense e existem valores que, mesmo diante da derrota, devem ser considerados vitoriosos. Diniz deu vida a movimentos que são maiores do que o próprio futebol. E são justamente eles que podem levar o Fluminense a uma conquista tão improvável quanto heróica nessa sexta-feira 22 de dezembro.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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