Milly Lacombe

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Em catastrófico show de Taylor Swift, o mercado de água não se autorregulou

"Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?"

Foi assim que o Cacique Seattle teria começado sua carta ao presidente estadunidense que fez uma proposta de compra da terra de seu povo por volta de 1850. A carta, documento conhecido e celebrado, é atribuída ao chefe da aldeia e vale ser lida na íntegra.

Pensei nela hoje cedo tomando conhecimento da trágica notícia da morte de Ana Clara Benevides, 23, durante o show de Taylor Swift no Brasil.

Os organizadores do show não deixaram que fãs entrassem com suas garrafas d'água a despeito da sensação térmica de 60 graus. Não pode. Vamos vender lá dentro esse produto aí, galera. Quanto vai custar? Bem, isso fica pra depois. Depende da demanda. Leis do mercado, sabe? Não podemos nos meter com elas. São sagradas. Oferta, demanda, essas coisas que vocês não entenderiam bem porque são fórmulas matemáticas complexas. Economia é coisa pra gente séria, branca, masculina, rica e engravatada. Vão lá dançar e se divertir e deixa que a gente cuida disso.

Pausa.

Economia é ciência humana e não ciência exata. Economia fala de relações entre pessoas, da relação com o meio, da forma como vamos consumir, distribuir, produzir. Economia é economia política. Economia é de interesse comum e não apenas conhecimento de poucos.

Há coisas que jamais deveriam entrar no circuito predatório do lucro acima de tudo, e água é uma dessas coisas.

Água é vida e todos dependemos dela para seguir respirando. Não é aceitável que seja negócio orientado apenas pelo lucro. Precisa chegar a todos, precisa ser consumida por todos. Empresas que represam, tratam e distribuem água devem servir à população e não a empresários, corporações ou ao mercado de capital. O mesmo vale para energia elétrica. Há bens que devem, por decência, existir fora do mercado e de suas sagradas (para alguns) leis.

Um show realizado sob temperaturas extremas deveria ter como prioridade a distribuição de água para todos os que pagaram - caro, muito muito caro - pelo ingresso.

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Seja como for, no show de Taylor Swift o mercado e as tais sagradas leis estiveram faltantes. Havia demanda, não havia oferta. O mercado não se autorregulou, falhou, fracassou, derreteu e, com isso, submeteu centenas de pessoas a situações de risco e, em um caso, a óbito.

É aceitável? É decente? É tolerável? Sugiro a leitura dessa entrevista com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo: "A economia se descolou da vida das pessoas".

Termino com outro trecho da carta atribuída ao Cacique Seattle:

Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar as suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais. Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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