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Com orgulho resgatado, Uruguai é novamente candidato às grandes histórias

Godin, Scotti, Lugano, Suárez e Eguren comemoram a vitória do Uruguai sobre Gana - Shaun Botterill - FIFA/Getty Images
Godin, Scotti, Lugano, Suárez e Eguren comemoram a vitória do Uruguai sobre Gana Imagem: Shaun Botterill - FIFA/Getty Images

Gabriel Perecini

23/11/2022 08h00

A Copa do Mundo é um evento único. Todo Mundial tem um episódio marcante, um jogo inesquecível, um golaço que remete àquele ano... Com tantas culturas e povos em ação, as Copas são um prato cheio para histórias que marcam época para vários países. E quem tem se notabilizado por grandes capítulos é o Uruguai, da relação com a sua gente até os principais capítulos de Copas do Mundo.

Desde o 1 X 0 contra a Coreia do Sul, na última rodada da fase de grupos de 1990, até o 3 X 0 contra a África do Sul em 2010, foram 20 anos sem vencer um jogo de Copa do Mundo. No meio disso, quatro Copas: o Uruguai esteve em apenas uma. Apesar da conquista da Copa América de 1995 contra o Brasil, a seleção uruguaia viveu uma forte crise de identidade. Mais do que isso: o país passava por problemas que iam além do futebol, com o fim da ditadura militar em 1985 e as dificuldades do processo de transição para um regime democrático.

A perda da vaga para a Copa de 2006 na repescagem, contra a Austrália, foi um ponto de virada para o país. Apesar de já viver um cenário crescente na economia, sem depender tanto de Brasil e Argentina, e estável politicamente, a seleção ainda sofria no futebol. Assim, o retorno de Óscar Tabárez não era apenas o anúncio de mais um técnico, mas o início de um processo de reestruturação, que incluía um projeto de captação e desenvolvimento de atletas jovens. Hoje, se vê uma seleção extremamente competitiva, com vários talentos espalhados pelos melhores times do mundo. Tudo isso apesar de ser um país de 3,5 milhões de habitantes, com o futebol local distante de qualquer protagonismo continental.

Mas voltemos à última das Copas que não contou com a participação uruguaia: Diego Lugano, capitão da Celeste entre 2006 e 2014, já detalhou como foi o retorno ao país, após a derrota para a Austrália. Seu pai o buscou no aeroporto e o fez andar pelos bairros e olhar para as pessoas. "Olha aquela criança indo para a escola: cabeça baixa. Olha aquele cara indo trabalhar: não fala com ninguém. Vocês mataram o país!", contou. "Para o Uruguai, pela cultura do futebol, ficar fora de um Mundial é uma tragédia."

Entendendo isso, fica fácil absorver o que aconteceu em 2010. Após uma classificação épica contra o Equador, em Quito, com gol da virada saindo aos 49 minutos do segundo tempo - a derrota deixaria a Celeste fora de outro Mundial - o Uruguai se classificou para a Copa e surpreendeu o mundo, terminando em quarto lugar na África do Sul, fazendo frente à Holanda e Alemanha mesmo nas derrotas. O jogo contra Gana dispensa comentários: marcou a história das Copas. Mas e o retorno para casa? Ao chegar em Montevidéu, mais de 500 mil pessoas foram às ruas receber os jogadores. Detalhe: a capital uruguaia possui 1,5 milhão de habitantes. "O povo não foi comemorar o quarto lugar, foi comemorar que tinham lá 23 caras que representavam de verdade o país", complementou Lugano, em entrevista concedida ao UOL Esporte, antes da Copa de 2018 (clique aqui para ver).

19.jun.2014 - Uruguaio Suárez comemora após marcar o gol da vitória contra a Inglaterra, no Itaquerão - REUTERS/Tony Gentile - REUTERS/Tony Gentile
Suárez comemora o gol da vitória do Uruguai contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 2014.
Imagem: REUTERS/Tony Gentile

Em 2014, os olhos estavam no Uruguai: seria a segunda Copa do Mundo em solo brasileiro, a primeira após o Maracanazo, e a Celeste chegava como campeã da Copa América depois de 16 anos. Após uma surpreendente derrota na estreia para a Costa Rica, o Uruguai bateu Inglaterra e Itália, favoritos do grupo, e conseguiu uma enorme classificação. O personagem das vitórias? Luis Suárez, que operou o menisco no dia 22 de maio e marcou os dois gols da vitória contra a Inglaterra no dia 19 de junho. Contra a Itália, mordeu Chiellini e foi expulso não apenas da competição, mas do Brasil, em uma das cenas mais bizarras já vistas no torneio. Retornou ao Uruguai e viu pessoas se aglomerarem em frente à sua casa para prestar apoio ao ídolo. O 7 X 1, com Klose ultrapassando os gols de Ronaldo em Copas, pode ter deixado esse capítulo em segundo plano, mas novamente o Uruguai foi protagonista de grandes histórias, com o seu povo se sentindo representado, orgulhoso e "abraçando" os personagens da seleção.

Em 2018, recordes: Maestro Tabárez, personificação do resgate histórico do Uruguai, empatou com os alemães Helmut Schoen e Sepp Herberger com quatro mundiais dirigindo uma mesma seleção. Além disso, se tornou o técnico com mais jogos à frente de um mesmo país. Na Rússia, aos 71 anos, chegou de muletas, já com problemas de locomoção. Na estreia, viu Giménez subir mais alto que os egípcios e marcar o gol da vitória uruguaia aos 44 minutos do segundo tempo, a primeira vitória celeste em estreias desde 1970. E logo no segundo dia tivemos a cena da Copa: mesmo com dificuldades, o treinador se levantou do banco, celebrou o gol e berrou um "Uruguay Nomá!" para os céus. Uma cena icônica que marcou mais um bom Mundial uruguaio, que venceu as três partidas da primeira fase, eliminou Portugal nas oitavas e caiu para a campeã França nas quartas, em um jogo duro. Apesar das naturais contestações no país sobre o desempenho nas partidas, não se discutia a entrega e a identificação de quem representava a seleção.

Em 2022, teremos a "última dança" de Suárez, Cavani, Godín e Muslera, que empatarão com Pedro Rocha como os únicos uruguaios presentes em quatro mundiais, além da "nova Era" com Diego Alonso. Se olharmos o retrospecto, o Uruguai já se candidata novamente a ser protagonista de capítulos marcantes em Copas do Mundo. Mais do que isso: a orgulhar o seu povo, a sua torcida. Após a conquista da Copa América de 2011, Maestro Tabárez celebrou essa reconquista da seleção com as pessoas: "Durante muitos anos, fizeram o povo "futeboleiro" uruguaio acreditar que o que aconteceu em 1950 era impossível de repetir. Mas nos últimos anos, os parâmetros de vitórias e derrotas mudaram e isso gerou um compromisso das pessoas com a seleção."

Veremos que histórias nos aguardam no Qatar. Mas, com entrega e representatividade, o Uruguai já ensinou que, parafraseando novamente o Maestro, "o caminho é a recompensa".

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