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M. Chagas: CBF privilegia árbitros mais ricos em ajuda pela pandemia

Árbitro Flavio Roberto Mineiro Ribeiro, durante partida entre São Paulo e Novorizontino - Marcello Zambrana/AGIF
Árbitro Flavio Roberto Mineiro Ribeiro, durante partida entre São Paulo e Novorizontino Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

Márcio Chagas da Silva

De Porto Alegre

05/04/2020 04h00

A CBF noticiou na última quarta-feira (1º) que repassará um auxílio financeiro aos árbitros durante a paralisação das competições. O repasse gira em torno de R$ 1 milhão, dividido entre 486 árbitros que fazem parte do quadro nacional. Em média R$ 2.057,61 para cada árbitro se fossem distribuídos de forma equânime.

No entanto, o texto publicado no site da entidade esclarece que alguns receberão em torno de R$ 5 mil e, consequentemente, outros deverão receber R$ 975. O critério utilizado foi respeitar a maior taxa recebida em 2019 por cada árbitro. O pagamento das taxas dos árbitros é de responsabilidade dos clubes, pois os árbitros não têm vínculo empregatício com a CBF e nem com as federações estaduais.

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Você pode acompanhar minhas observações sobre este assunto no meu Instagram @marciochagas76 e @utopia_possivel.

Como funcionará o repasse desse valor? Este "auxílio" destinado a dar suporte ao quadro de árbitros será uma antecipação da taxa de alguma futura partida. Segundo a fonte oficial, o árbitro terá garantido que participará de pelo menos um jogo no campeonato, independente do sorteio, e assim conseguirá restituir o dinheiro. O auxílio funcionaria assim como um empréstimo.

Você consegue entender a precariedade das relações trabalhistas na arbitragem brasileira? Uma profissão que é regulamentada, mas que não tem profissionalização, e que nesse momento de calamidade e recessão mundial, ao contrário de receberem um suporte financeiro emergencial, para se manterem, os árbitros receberão um empréstimo. Em outras palavras, "no frio tapa-se um santo destapando-se o outro".

Neste momento de emergência, a associação nacional dos árbitros, assim como os sindicatos não deveriam dar esse aporte aos árbitros também? Essas entidades arrecadam verbas todos os anos e imagino que tenham uma caixa reserva para momentos agudos. E os grandes clubes, que exigem tanta qualificação dos árbitros, sabendo dessa realidade de carência de seus colaboradores, não deveriam se mobilizar para auxiliar esses profissionais? Poderiam, por exemplo, repassar alguma porcentagem das cotas de televisão que recebem, já que nem a isso os árbitros têm direito.

Sabemos que as consequências da pandemia do novo coronavírus nos castigarão por muitos meses e depois deste período teremos uma restrição no crescimento da economia mundial. Os árbitros não têm plano de saúde quando se lesionam e ficam fora da escala, imagine agora com a saúde pública colapsada e a perda natural de sua renda. O cuidado com seu corpo sensibiliza somente durante uma partida?

O sistema econômico predador das grandes empresas não concebe outras possibilidades para evitar o caos econômico generalizado? Não parece razoável que a parcela da sociedade acumuladora do maior capital e patrimônio seja solicitada a participar em sacrifícios e contribuição? Na lista de sacrifícios só tem nome de pobre e preto?

Acredito que neste momento, marco histórico de tamanha importância desde a Segunda Guerra Mundial, seja possível exigir um projeto de justiça social que preveja a redistribuição de renda, taxando as grandes fortunas e cortando os privilégios de grandes bancos.

A situação limite que estamos vivenciando trará questões ignoradas por falta de vontade política dos envolvidos ou falta de interesse do mercado. Desde problemas específicos de cada categoria profissional e seus abusos contratuais até as históricas desigualdades sociais.

Atualmente o valor estabelecido em contrato de trabalho para a maioria dos árbitros não assegura tranquilidade de uma renda mensal, em situações de pandemias ou não, para a execução de suas funções. Isso fica evidente agora, mas sempre esteve submerso no silenciamento dos profissionais que precisam manter os vínculos como prestadores de serviço.

Meus colegas de trabalho, em situação melhor, podem querer fechar os olhos para a desigualdade de remuneração na própria classe. Como diz o rap "Cada um por si" do grupo Sistema Negro: "Aqui meu irmão, é cada um por si, mesmo se sei, não sei. Se sei, digo não vi." Mas até isso também está insustentável.

O novo mundo com a covid-19 esfrega na cara a nossa indiferença com a opressão do outro desde que esteja garantido o nosso. Os exaltados já devem estar se remexendo com a leitura deste texto e pensando que tudo foi conquistado pelo próprio esforço.

A falácia do lugar conquistado pela meritocracia é quase um mantra daqueles que insistem em não ver seus próprios privilégios acima do bem-estar de todos e de uma forma de conviver possível em um planeta que sobreviverá. (Talvez)

É... futebol é uma caixinha branca de surpresas que se dá no primeiro de abril.

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