Topo

Coluna

Campo Livre


Campo Livre

Zaidan: Brasil e Peru: a goleada e a decisão

Gallese falhou contra o Brasil na primeira fase, mas se redimiu com pênalti defendido e atuação de gala no mata-mata - Ricardo Moraes/Reuters
Gallese falhou contra o Brasil na primeira fase, mas se redimiu com pênalti defendido e atuação de gala no mata-mata Imagem: Ricardo Moraes/Reuters

07/07/2019 04h00

"Pode entregar a taça" é uma daquelas afirmações que a história do futebol desautoriza.

Mas jogos decisivos também podem ter favoritos. A seleção brasileira é melhor que a peruana e ainda tem a vantagem de jogar no Maracanã. É claro que Tite e seus convocados não irão se fiar naquela goleada da fase de grupos, quando venceram os peruanos por 5 a 0 (e o Gallese ainda defendeu um pênalti). Mas também é óbvio que aquele jogo e seu resultado incomum aparecerão, em silêncio e quase secretamente, na mente de cada jogador e dos dois técnicos.

Gallese, principalmente, deve se lembrar de pormenores dos lances na Arena Corinthians, e, particularmente, de como sua infelicidade em uma tentativa de fazer um lançamento permitiu o segundo gol do Brasil e fez o time peruano perder sua capacidade de pelo menos tentar uma reação. Porém, se a vitória brasileira naquela noite foi marcante para Gallese, não há dúvida de que ele tem reagido muito bem: nos dois jogos seguintes, o goleiro peruano foi decisivo, garantindo, ao defender um pênalti cobrado por Suárez, a classificação do Peru para as semifinais, além de pegar tudo contra o Chile, incluindo mais um pênalti, este batido por Vargas.

Essa situação de, em um mesmo torneio, um time golear o outro e, poucos dias depois, enfrentá-lo na final aconteceu na Copa de 54. O time húngaro era, então, o melhor do mundo--- e, hoje, é reconhecido como um dos melhores da história. No dia 20 de junho daquele ano, a Hungria venceu a Alemanha Ocidental por 8 a 3. O resultado não espantou os que, em algum momento entre 1950 e a Copa na Suíça, viram a seleção treinada por Gusztav Sebes, cujas ideias eram materializadas pelos craques Bozsic, Hidegkuti, Kocsis, Czibor e, é claro, Puskas. Duas semanas depois da formidável goleada, húngaros e alemães se reencontraram.

Só que, naquele 4 de julho, era final de Copa do Mundo. A Alemanha venceu por 3 a 2, ganhou o primeiro de seus quatro títulos mundiais e desencadeou no imaginário do futebol a crença de que facilitou a derrota por 8 a 3, com a intenção de iludir os húngaros, levando-os a não se preocuparem com os alemães em eventual embate na fase final. Anos depois, a lenda foi reforçada pela desinformação de que, no 8 a 3, a Alemanha jogou com um time formado quase inteiramente por reservas.

Alemanha - Reprodução - Reprodução
Em 1954, Alemanha tomou 8 da Hungria e duas semanas depois venceu a final da Copa do Mundo contra o mesmo rival
Imagem: Reprodução

Na verdade, porém, seis dos alemães titulares na decisão estiveram em campo também em 20 de junho, incluindo o capitão e líder Fritz Walter e o artilheiro Helmut Rahn, um dos melhores atacantes da história do futebol alemão. A derrota da Hungria na final não foi provocada pelo pragmatismo dos alemães, mas, sim, por outros fatores: Puskas, ainda não completamente recuperado de contusão, só entrou em campo porque estava em jogo um título mundial; choveu o suficiente para piorar muito o gramado, o que desgastou ainda mais os cansados húngaros e nivelou tecnicamente os times; o árbitro anulou um gol da Hungria--- uma decisão contestada até hoje; por fim, Rahn não quis saber dessas coisas e fez dois gols.

Os peruanos podem repetir o feito dos alemães? Sim, é possível, mas a probabilidade de o Brasil ser campeão é muito maior. Nos cinco jogos que fez, a seleção brasileira não tomou nem sequer um gol e tem saldo de dez. Os dois empates por zero a zero, contra Venezuela e Paraguai, e também o primeiro tempo da partida contra os bolivianos mostraram problemas: certa afobação no ataque e um mecanicismo no meio-campo. O time passou grande parte desses jogos se limitando à mistura de rapidez nas pontas com cruzamentos quase sempre aleatórios.

Na goleada sobre os peruanos, essa toada medíocre durou apenas doze minutos; depois do primeiro gol, os jogadores se acalmaram, como ficou claro na tranquilidade do Firmino ao se aproveitar da vacilada do Gallese. No jogo seguinte do Brasil, o empate sem gols foi agravado pelo fato de os paraguaios, com a expulsão de Balbuena, terem ficado com dez jogadores desde os 12 minutos do segundo tempo. Mas foi bom para os jogadores brasileiros terem de encarar uma disputa por pênaltis. Situações assim podem acelerar o amadurecimento dos mais novos e unificar os objetivos imediatos dos 23 convocados.

Contra a Argentina, Tite mudou a organização do time, porque sabia que era preciso se preocupar com Messi. O jogo da semifinal mostrou que o treinador do Brasil percebeu que o time deve ter roteiros alternativos. Tite, à sua maneira, admite que trouxe lições dos campos russos.

Sempre que foi sede da Copa América, o Brasil levantou a taça. Acredito que a escrita será mantida, mas não por ser inevitável, e, sim, porque a diferença de qualidade, quando há, é a única premissa aceitável para se arriscar um palpite sobre um jogo de futebol.

Campo Livre