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André Rocha

Ao acusar Gerson de "malandragem", Mano escancarou o racismo estrutural

Gerson discute com Mano Menezes em Flamengo x Bahia, jogo do Brasileirão -  Jorge Rodrigues/AGIF
Gerson discute com Mano Menezes em Flamengo x Bahia, jogo do Brasileirão Imagem: Jorge Rodrigues/AGIF

Colunista do UOL Esporte

23/12/2020 08h09

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Gerson acusou Ramirez de injúria racial. O jogador colombiano do Bahia nega, até agora não há nenhuma imagem ou captação de áudio conclusiva. O Flamengo informa ter um laudo do Instituto de Educação de Surdos (INES) com análise da leitura labial que mostra uma fala supostamente racista de Ramirez, mas contra Bruno Henrique, momentos antes da denúncia de Gerson.

O caso vai ao STJD. Gerson prestou depoimento na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância. Tudo será apurado, mas o Bahia afastou o jogador. Também demitiu Mano Menezes, sem esclarecer oficialmente se foi pela quinta derrota consecutiva no comando da equipe ou por conta do comportamento à beira do campo durante a discussão.

O áudio captado da intervenção do treinador é bem claro. Ao ouvir de Gerson que foi chamado de negro, Mano acusou o jogador do time adversário de "malandragem". O jogo estava 2 a 1 para o Flamengo, que havia acabado de sofrer um gol, do próprio Ramirez, e Mano insinuou que Gerson queria tumultuar para esfriar a reação do Bahia.

"Malandragem". Nada do que aconteceu domingo no Maracanã foi mais simbólico para escancarar o racismo estrutural brasileiro que o uso desse termo. Um rótulo decalcado na pele dos negros desde a abolição da escravidão no Brasil. Entregues à própria sorte, sem integração nas regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado na virada para o século XX.

Como buscar uma ocupação sem acesso à higiene básica, roupas adequadas, formação básica para um ofício? O ex-escravo foi jogado nas ruas e culpado pelo descaso do Estado. Assim recebeu o estigma de "malandro", de só trabalhar sob ferros. De se refugiar em favelas e buscar soluções "clandestinas" para viver. Ou sobreviver.

Fruto do desamparo que não atingiu os imigrantes europeus, como os ascendentes alemães do próprio Mano, nascido em Passo do Sobrado, no Rio Grande do Sul. Esses receberam incentivos e terras para ocupar. E construíram uma narrativa para se diferenciar dos negros pela força de trabalho. Sem subterfúgios ou desvios.

Discurso conveniente na época que reforçou o preconceito. Talvez Mano não tenha pensado em nada disso no calor do jogo. Mas é reflexo de um conceito enraizado. Que precisa ser combatido diariamente, caso a caso. Sem ceder ao discurso que se pretende hegemônico de que protesto contra racismo é "mimimi". De que a vítima tem que sofrer calada para não causar "polêmica".

Gerson gritou na hora, ajudou seu time a virar o jogo dentro de campo e partiu para o ataque nas redes sociais e na delegacia. Não vai calar a boca, nem deixar barato.

E Mano precisa repensar o conceito de "malandragem". Ele que invariavelmente tenta tumultuar o jogo com reclamações histriônicas contra arbitragem, cola em si uma imagem de "Mourinho brasileiro", o "Darth Vader" que faz jogos mentais com os adversários. Que busca levar vantagem em qualquer situação, como na antiga "Lei do Gerson".

A nova diz que não haverá refresco para o desrespeito. É melhor se acostumar.