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André Rocha

Resistência ao rodízio de jogadores é defesa histórica de privilégios

Gabigol comemora gol do Flamengo contra o Fortaleza - Thiago Ribeiro/AGIF
Gabigol comemora gol do Flamengo contra o Fortaleza Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Colunista do UOL Esporte

08/09/2020 08h59

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"O cara mal chegou no ônibus e já quer sentar na janelinha". A frase de Romário é de 2004 e se eternizou como resistência ao treinador Alexandre Gama no Fluminense. Aos 37, um ano mais novo que o Baixinho, teve a "audácia" de colocar o astro máximo do time no banco. Acabou fritado e deixou o clube.

Romário que sempre simbolizou os privilégios dos craques. Maior salário, melhor vaga na garagem, "seleção" dos treinos que participa, entre outras vantagens. No Flamengo foi sempre alvo das críticas de Zico, que até hoje considera como único privilégio possível para a estrela da companhia o maior salário. Nos treinamentos é preciso ser o primeiro a chegar e o último a sair. Romário não entendia e tratava como "inveja".

A titularidade absoluta nem devia ser questionada, independentemente do desempenho e das condições físicas. Ausência só em caso de contusão ou se o jogador alegasse desgaste ou problema pessoal. Questão de "hierarquia". Até porque, para Romário, "treinador bom é aquele que não atrapalha".

Por esse e outros motivos, o atacante ficou de fora das Olimpíadas de 2000 e da Copa do Mundo de 2002. Vanderlei Luxemburgo e Luiz Felipe Scolari decidiram não arriscar contar com um jogador experiente no grupo que resistiria a ficar na reserva se fosse preciso e poderia criar sérios problemas na gestão do vestiário.

Este que escreve não é "hater", mas fã do Baixinho, o maior jogador brasileiro depois da Era Pelé. Mas reconhece que Romário é também o maior símbolo da visão brasileira de que o craque pode tudo. Ainda mais se entregar resultados.

Só que o futebol mudou e o cenário na pandemia é ainda mais peculiar. Meses de inatividade até a retomada e agora um calendário apertado, com jogos a cada três dias. Em setembro, com a volta da Libertadores, o adicional das viagens ainda mais longas que as dentro do território nacional.

É impossível jogar sempre, ou quando quiser. A escalação precisa ser decidida considerando o quadro médico e os testes físicos. A vontade do atleta conta, mas não pode pesar mais que a análise racional em conjunto.

Gabigol saiu de campo depois de marcar o gol da vitória do Flamengo sobre o Fortaleza por 2 a 1 sem atender o Sportv, nem fazer a atividade pós-jogo de quem começou a partida no banco de reservas. A impressão de descontentamento por não ter começado a partida se dilui com a imagem da comemoração efusiva do gol com Domènec Torrent. Um certo incômodo com as decisões do técnico, porém, parece bem claro.

Também foi o suficiente para despertar no ex-jogador e comentarista Paulo Nunes, em colegas jornalistas e alguns torcedores essa resistência cultural: "Não pode ficar no banco, se está bem tem que jogar". Se a estrela deseja estar em campo ninguém pode impedir.

Pode e deve. Ainda mais em um jogo tão intenso e que exige cada vez mais dos atletas. É assim no mundo todo, inclusive com Pep Guardiola. Dome viu seu ex-chefe poupar grandes estrelas por uma mera questão científica. Está no livro "Guardiola Confidencial", de Martí Perarnau, nas palavras do preparador físico e recuperador de lesões Lorenzo Buenaventura, que até hoje trabalha com o técnico catalão:

"Jogar uma partida a cada três dias influi demais no planejamento de preparação. No terceiro dia após o jogo, quando se alimentou bem, o jogador recuperou 80% do glicogênio dos músculos. Somente 80 por cento! Imagine se ele se alimentou mal...E depois de quatro jogos consecutivos em ciclos de três dias, o risco de lesão aumenta 60%", explica Buenaventura.

Isso sem contar a longa inatividade que afetou todos os processos. E o descanso de antes não dá maior resistência agora, já foi. Por isso o cuidado. Por esse motivo, Gabigol vai sentar no banco e Pedro estará em campo quando Domènec e comissão técnica acharem necessário ou mesmo conveniente para o time, de acordo com as características do adversário.

No Brasil é contracultura. Quem já assistiu a treinos sabe das provocações entre jogadores e a definição de "hierarquia": "Você é meu banco!" Este jornalista já ouviu de um atleta que aceitava ser reserva, contanto que isso ficasse bem claro. "Até para planejar a vida, o fim de semana em que não sou relacionado". Outro disse que aceitava rodízio, contanto que ele, e não o treinador, definisse quando ficaria de fora ou sentaria no banco.

Difícil mudar, mas é preciso. O modelo de Jorge Jesus, elogiado por não desprezar nenhuma competição, fica para trás porque a realidade agora é outra. E o português, no fundo, fazia uma espécie de rodízio inevitável, por lesão, convocação ou suspensão. O próprio Gabigol ficou de fora de muitas partidas por expulsão ou terceiro cartão amarelo.

Agora Dome quer o artilheiro calmo e pronto para jogar quando for necessário. Sem os lesionados Bruno Henrique e Pedro Rocha, o treinador catalão certamente conta com seu camisa nove para o Fla-Flu de quarta-feira. Mas outra estrela do elenco campeão brasileiro, da Libertadores, da Supercopa do Brasil, da Recopa Sul-Americana e carioca pode descansar. Em casa ou no banco. E daí?

Gabigol é fã de Romário, já publicou foto com o "Baixo" no Instagram. Mas o goleador, se está mesmo incomodado, precisa compreender que os tempos são outros. O melhor elenco do continente tem que rodar e o time ser mais "comunitário". É nesta hora que falta um senso coletivo a todos nós, agentes diretos e indiretos do futebol. Este texto é crítica, mas também mea culpa.

Porque a resistência ao rodízio é defesa histórica de privilégios. Só que o "novo normal" requer mudança de paradigmas. Para todos.