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Histórias incríveis de heróis improváveis


Mãe das araras perdeu dois filhos enquanto salvava ave da extinção

De Ecoa, em Miranda (MS)

17/07/2023 06h00

Assista ao vídeo acima

A vida da bióloga Neiva Guedes, 60, é cheia de reviravoltas. Nos anos 80, ela mudou o próprio destino a partir de um desejo até arriscado: salvar as araras-azuis no Pantanal.

A missão era perigosa e envolvia solucionar um estrago causado por uma grande quadrilha de tráfico internacional de animais. E ela resolveu combatê-los com uma ideia.

Neiva desenvolveu ninhos artificiais para facilitar a reprodução das araras-azuis. O ninho consiste em uma caixa oca, com um buraco no centro, fixada no tronco de árvores altas. Dentro deste espaço, as araras adultas cuidam dos filhotes até a adolescência.

A invenção imita o ninho das araras, que usam o bico para escavar a cavidade em árvores com troncos mais moles. Mas a situação era urgente: para evitar o pior, era preciso de mais espaço do que as árvores de "miolo mole" disponíveis na natureza.

"A maioria das árvores do Pantanal é de madeira dura. A arara não consegue escavar e fazer o ninho", explica Neiva. Se o resgate demorasse, a arara-azul poderia sumir do Pantanal.

Aves na mira do tráfico internacional

1 - AGAMI stock/Getty Images/iStockphoto - AGAMI stock/Getty Images/iStockphoto
Arara-azul-de-lear está em risco de extinção e construção de complexo eólico preocupa protetores.
Imagem: AGAMI stock/Getty Images/iStockphoto

Na década de 1980, traficantes usavam cola para grudar araras nos galhos das árvores. Presa, as aves emitiam sons que atraíam mais araras-azuis, que também eram sequestradas pelo tráfico. "Centenas delas foram capturadas", lembra. Dali em diante, eram forçadas a se tornarem animais domésticos ou tinham as penas arrancadas.

A arara-azul poderia ser mais uma vítima na família das araras. Na época, a ararinha-azul estava à beira da extinção no Brasil e a arara-azul-de-lear também corria risco de desaparecer. Nos anos 1990, a arara-azul-pequena foi confirmada como extinta para sempre. "Eu não queria que o mesmo acontecesse com a arara-azul", diz Neiva.

O ninho artificial dobrou o número de espaços disponíveis para araras se reproduzirem, mas a instalação era complexa. O Pantanal possui áreas permanentemente alagadas e muitas áreas são acessíveis apenas barcos ou em aeronaves pequenas.

Para se deslocar por rios e estradas e instalar os ninhos, Neiva pegava carona a cavalo com pantaneiros, subia na traseira de caminhonetes e fazia amizade com ribeirinhos, indígenas e fazendeiros. Na maioria das vezes, viajava sozinho ou tinha a ajuda voluntária de amigos.

Os ninhos artificiais, porém, deram certo. "Os fazendeiros começaram a me falar", diz Neiva. "Comecei a encontrar [araras] em áreas onde [não mais ocorriam", diz. Com o sucesso, ela fundou o Instituto Arara-Azul e atraiu atenção de patrocinadores e da imprensa.

As improbabilidades

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Neiva Guedes criou um ninho artificial que ajudou a evitar a extinção da arara-azul no Pantanal
Imagem: Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL

O trabalho de Neiva é parte de um acontecimento inesperado. A família dela amargou luto e dificuldades financeiras quando pai morreu vítima de um AVC. Nessa época, a bióloga tinha 19 anos.

Para trabalhar durante o dia, ela trocou o curso diurno de medicina por biologia, no período noturno. E tinha outra novidade: a mãe estava grávida de oito meses quando ficou viúva. Neiva iria ter uma irmã. "Mas sempre tive muita determinação e foi um desafio", diz.

"Mãe das araras" luta para engravidar

3 - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL
Neiva Guedes (foto) teve uma ideia que parecia simples: um ninho artificial para salvar as araras. Mas só parecia simples.
Imagem: Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL

Quando já trabalhava com os ninhos, a bióloga sentiu um cansaço estranho. Tentou subir em uma árvore e não conseguiu. Até que fez um teste e descobriu uma gravidez de cinco meses.

Como trabalhava sozinha, uma outra bióloga foi treinada para ficar no Pantanal. Em um dos treinamentos, Neiva foi infectada por carrapatos e teve uma perda gestacional. Meses depois, quando engravidou pela segunda vez, teve dengue. Mais uma perda, totalizando duas perdas gestacionais.

Você trabalha com biologia e, no meu caso, com a reprodução: você vê vaca com seu filhote, cavalinhos com filhotinhos, araras com filhotinhos, menos eu? Eu era a única que não tinha meu filhote? Neiva Guedes

O amor te dá asas

4 - Instituto Arara Azul/Divulgação  - Instituto Arara Azul/Divulgação
Juliana Paes e equipe técnica do Instituto Arara Azul
Imagem: Instituto Arara Azul/Divulgação

Além dos ninhos onde crescem, os filhotes recebem um pingente de identificação para serem monitorados por biólogos do instituto. Cada um é batizado com um nome, geralmente escolhido por um patrocinador que faz uma adoção simbólica das aves, que vivem livres.

A arara-azul vive com os pais até os 7 anos, quando atinge a adolescência e se une a colegas da mesma idade. "Nós os chamamos de 'os teens' do Pantanal", explica a bióloga.

Adultas, as aves encontram um namorado ou namorada, se casam e vivem em um relacionamento monogâmico até morrer. O casal vive grudado e os "pombinhos" desenvolvem uma comunicação única com o filhote, que só responde aos próprios pais.

Uma arara-azul vive até 40 anos. "Com certeza, sabendo hoje como é a formação dessas araras na natureza, não tenha dúvida que os traficantes desfizeram vários laços", diz.

O trabalho entrelaçou a vida de araras que, sem Neiva, talvez nunca tivessem se encontrado. O tráfico de animais foi derrotado com a ajuda da polícia, pela pressão de grupos ambientalistas e sua capacidade de destruição desafiada por uma bióloga.

Com o sucesso, ela se tornou conhecida em todo Mato Grosso do Sul. Hoje, biólogos e veterinários sonham em conhecê-la e em serem parte do instituto. Ela também ampliou os próprios laços: teve uma filha, que hoje tem 20 anos.

Hoje também me sinto realizada como mãe. Neiva Guedes

A região de atuação do Instituto Arara-Azul tem a maior população de araras-azuis encontrada na natureza do Brasil, com cerca de 5 mil aves. "O agir para mim é continuar trabalhando, treinando gente jovem a continuar o trabalho, a motivar meninas e mulheres na ciência e acho que isso me faz ter superação", conclui.

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Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do informado anteriormente, a arara não é um pássaro