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Uma 'outra' África: 'Em países como Nigéria, empreendedores são rockstars'

A jornalista nigeriana Moky Makura, diretora da organização Africa No Filter. - Arquivo pessoal/Moky Makura
A jornalista nigeriana Moky Makura, diretora da organização Africa No Filter. Imagem: Arquivo pessoal/Moky Makura

Lia Hama

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

20/03/2023 06h00

Aos 55 anos, a jornalista nigeriana Moky Makura quer dar voz a narrativas esquecidas sobre a África. Vivendo entre Joanesburgo, na África do Sul, e Londres, no Reino Unido, Moky está à frente da Africa No Filter, organização sem fins lucrativos que, com apoio de parceiros internacionais, busca valorizar a inovação e a riqueza cultural africana, traços por vezes ignorados em um continente associado à pobreza, às guerras e à corrupção.

Como diretora executiva da ONG, a jornalista tem liderado projetos como a Bird, uma agência de notícias lançada em 2021 que distribui, de graça, conteúdo multimídia para mais de cem veículos de comunicação do continente.

"Claro que existem fome e violência nos países africanos, mas isso já é exaustivamente noticiado pelas agências internacionais. Nós mostramos o outro lado da moeda, que pouca gente conhece, como iniciativas nas áreas de tecnologia, empreendedorismo e combate às mudanças climáticas", afirma a jornalista nigeriana.

De Londres, a ex-apresentadora de TV e autora do livro "Africa's Greatest Entrepreneurs" ("Os maiores empreendedores da África", em tradução livre) falou a Ecoa sobre a luta dos povos africanos por mais representatividade dentro do próprio continente, além do desafio de criar uma rede de colaboradores em 54 países da África. Moky também comentou sobre a atual crise no mercado de comunicação global e a importância do jornalismo profissional num cenário dominado por fake news.

Ecoa: Por que as notícias sobre a África quase sempre abordam temas como fome, pobreza e violência? Notícia ruim dá mais audiência?

Moky Makura: Acho que há duas razões. A primeira é que a mídia tem o costume de ver sempre o lado negativo das coisas, é o que dá o lide [abertura de um texto jornalístico, contendo as informações principais].

Fomos acostumados a achar que só é notícia aquilo que "sangra". A segunda razão é que os veículos estrangeiros se habituaram a retratar a África dessa maneira. Fizemos uma pesquisa de como as histórias sobre o continente são contadas e identificamos cinco temas principais: pobreza, doenças, conflitos, corrupção e governança ruim.

Isso nos leva à compreensão sobre quais são as narrativas construídas sobre a África. A primeira é de que o continente é falido. A segunda é de que a África depende de outros de fora para contarem suas histórias. E a terceira é de que os africanos não têm capacidade de fazer as mudanças que são necessárias. Nós buscamos nos contrapor a essas narrativas, mostrando o outro lado da moeda.

Quais tipos de notícias são produzidas pela Bird?

Nosso trabalho é contar o que os africanos estão fazendo, mostrar que somos agentes da nossa própria história. Noticiamos, por exemplo, que a África do Sul é o segundo maior fornecedor de frutas cítricas do mundo. As pessoas acham que a África está morrendo de fome, mas fornecemos alimentos para outras regiões do planeta.

Pouca gente sabe, mas o Quênia tem o maior número de transações em criptomoedas, ponto a ponto, do mundo. Em termos de liberdade de imprensa, a Namíbia está mais bem posicionada do que os Estados Unidos no ranking mundial da organização Repórteres Sem Fronteiras. Investimos em histórias como essas, baseadas em dados concretos e sobre os quais a maioria das pessoas nunca ouviu falar.

Somos africanos escrevendo sobre africanos para um público africano. Não precisamos de correspondentes estrangeiros para fazerem isso por nós.

Qual é o objetivo do trabalho de vocês?

Buscamos uma melhor representação da África, queremos que nos representem como somos e não como acham que somos. Eu passo boa parte do meu tempo em Joanesburgo, na África do Sul. Claro que existem pobreza e violência na cidade onde eu vivo, mas não é só isso o que tem por lá.

Há tantas pessoas escrevendo sobre histórias negativas e tão poucas contando as histórias que nós contamos. Não gosto de chamá-las de histórias positivas porque parece que estamos fazendo um trabalho de relações públicas da África — e não se trata disso, apenas queremos ser normalizados. Nós, africanos, somos pessoas normais, com características positivas e negativas, como todo mundo.

Antes de dirigir a Africa No Filter, você participou de outros projetos que buscam mostrar um lado menos conhecido do continente, como no livro sobre os empreendedores africanos. Foi difícil achar esses empresários bem-sucedidos?

Não foi difícil porque, em seus países, esses homens de negócios são muito famosos e já haviam sido perfilados antes.

Em países como África do Sul, Nigéria e Quênia, esses empreendedores são verdadeiras celebridades, fazem sucesso como astros do cinema ou estrelas do rock. Eles têm dinheiro e inspiram muita gente. Fora de seus países, no entanto, são desconhecidos e foi por isso que escrevi o livro. Essa tem sido a minha missão: que os africanos contem suas próprias histórias, que não dependam dos americanos ou dos britânicos para que elas sejam contadas.

Normalmente, como os jornais e as plataformas de notícias africanas fazem a cobertura do que acontece no resto do continente?

Numa sondagem com 38 editores africanos, analisando o conteúdo de 60 plataformas de notícias sobre a África, descobrimos que, se você está em Gana, ao ler uma notícia sobre a África do Sul, estará lendo o mesmo conteúdo que alguém nos Estados Unidos ou no Brasil, porque quem fornece essas notícias são as empresas de comunicação globais — só elas têm dinheiro para isso.

Como as plataformas de notícias locais não têm recursos para manter correspondentes nos outros 53 países africanos, elas recorrem ao material que vem da Reuters, da France Presse, da Associated Press ou da BBC. Os editores não têm outras fontes de notícias além das estrangeiras.

Por isso, decidimos lançar a Bird: queremos que as histórias africanas sejam escritas por africanos e que não reforcem essa agenda negativa de pobreza e dependência. Isso faz toda a diferença porque muitas das redações que operam na África são formadas por estrangeiros. As pessoas que determinam o que eu e você lemos sobre a África não são africanas.

Como o fato de as notícias serem selecionadas, escritas e editadas por africanos pode mudar o conteúdo delas?

Isso muda a forma como você enquadra as histórias, já que, nesse caso, elas são escritas do ponto de vista de quem as conhece. Você não está escrevendo: "Olha o que esses africanos estão fazendo, olha como eles interagem entre si". Nos Estados Unidos, jornais enviam um correspondente americano ao Brasil para interpretar as notícias brasileiras para uma audiência americana. No caso da Bird, somos africanos escrevendo sobre africanos para um público africano — não precisamos de correspondentes estrangeiros para fazerem isso por nós.

Equipe de reportagem da Bird em ação. Segundo Moky, um dos planos da agência é oferecer notícias gratuitas para plataformas africanas. - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Equipe de reportagem da Bird em ação. Segundo Moky, um dos planos da agência é oferecer notícias gratuitas para plataformas africanas.
Imagem: Reprodução/Instagram

Quem são os jornalistas que escrevem para vocês? Vocês têm uma rede de colaboradores freelancers?

Temos uma equipe fixa, que escreve exclusivamente para nós, e um grupo de colaboradores freelancers. Todos trabalham em esquema remoto. Quando começamos, perdíamos muito tempo reescrevendo as matérias. Os recém-formados saem das faculdades de jornalismo sabendo relatar apenas o básico: quem, o quê, quando, onde e por quê. Eles não sabem produzir reportagens especiais como as nossas.

O que fazemos agora, após um ano e meio de experiência, é reduzir o número de colaboradores. Identificamos aqueles com quem queremos trabalhar, os que já sabem quais tipo de pautas nos interessam e como escrever para nós. Hoje também somos mais proativos, sabemos melhor quais são as histórias que queremos e pautamos os repórteres de forma mais objetiva.

Não há dúvidas de que esses são tempos difíceis para as empresas jornalísticas, mas essa é uma instituição de interesse público, que precisa continuar existindo.

Os jornalistas que escrevem para vocês são, em sua maioria, jovens recém-saídos da faculdade?

Sim, por duas razões. Primeiro porque o nosso continente é formado por uma população muito jovem. Segundo porque não pagamos o mesmo valor que uma Reuters ou uma France Press paga a um jornalista experiente. Nosso objetivo é criar oportunidades para os jovens e, por isso, oferecemos também um curso de formação em parceria com a Thomson Foundation.

Quais são os principais desafios enfrentados pela Bird?

O principal desafio é de financiamento, já que a Africa No Filter é a única organização que sustenta a Bird. E a Bird opera no menor custo possível, fornecendo conteúdo gratuito de texto, foto e vídeo para mais de cem plataformas de mídia da África, inclusive para grandes empresas como a Quartz.

Uma agência de notícias como a Bird seria viável sem o apoio financeiro de entidades filantrópicas?

O fundo nos permitiu dar início aos trabalhos da agência, mas agora a ideia é que ela se torne sustentável financeiramente. Pensamos, por exemplo, em oferecer as notícias gratuitamente para as plataformas africanas, mas cobrar uma taxa das empresas estrangeiras. Assim temos uma fonte de recursos.

Também conseguimos financiamento de organizações voltadas a combater a crise climática. Elas nos pediram para contar histórias de africanos que estão atuando nessa área, pois há uma percepção de que os africanos são os mais atingidos pela crise climática, embora nada façam para mitigá-la. Então, estamos atrás de outras parcerias desse tipo, mas, de fato, se não houvesse o dinheiro desse fundo, a Bird não existiria.

Como você enxerga o futuro do jornalismo?

Acho que há um grande papel a ser desempenhado pelo jornalismo, em razão das campanhas de desinformação e propagação de fake news. Se você é uma marca de mídia confiável ou se você é um jornalista de renome, tem a oportunidade de ser a pessoa que dá as notícias com credibilidade, por ter sido testado e aprovado antes.

O público sabe que pode confiar no que você fala. Se você pega uma matéria da Bird, sabe que ela foi bem apurada, editada e checada. Se o conteúdo for bom, vai atrair anunciantes. Além disso, há cada vez mais fundos de organizações filantrópicas apoiando a mídia independente, como é o caso do International Fund for Public Interest Media.