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'Pardo não': entenda importância do Censo em aldeias e quilombos

O recenseador João Gabriel da Costa de Souza, conversa com moradora do quilombo Maria Joaquina, que fica em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro. Pela primeira vez a população quilombola será contada no Censo - Eduardo Anizelli/Folhapress
O recenseador João Gabriel da Costa de Souza, conversa com moradora do quilombo Maria Joaquina, que fica em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro. Pela primeira vez a população quilombola será contada no Censo Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

De Ecoa, em São Paulo

06/09/2022 06h00

O Censo Demográfico 2022 iniciou em agosto a coleta de dados em domicílios por todo o Brasil. Além de atualizar as estatísticas - a edição anterior foi a de 2010 - sobre a população brasileira em geral e suas condições de vida, a pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) tem relevância específica para populações como indígenas e quilombolas.

"Primeiro, estar nas estatísticas oficiais já garante a esses grupos a existência perante o Estado. Nos materiais didáticos, na informação que circula na sociedade como um todo, muitas vezes eles estão como algo do passado. Tem esse papel de visibilizar a diversidade étnica que há no Brasil em termos de povos e comunidades tradicionais", explicou a Ecoa a coordenadora do Censo de povos e comunidades tradicionais do IBGE Marta Antunes.

Além desse reconhecimento, ter dados concretos ajuda a demandar políticas públicas para esses grupos e a avaliar as que já foram implementadas. São garantias básicas para populações que ainda tem sua sobrevivência ameaçada e que levaram mais de um século para serem contabilizadas pelo Censo.

'Demora é fruto do racismo estrutural'

No caso dos indígenas, o IBGE passou a retratá-los apenas a partir de 1991. E foi só em 2010 que se obteve dados concretos do número de indígenas existentes no país - 900 mil na época - e de demografia por etnia. O mais detalhado estudo feito pelo IBGE sobre os povos indígenas até então atestou a existência de 305 etnias e 274 línguas indígenas faladas nos domicílios do país.

O Censo 2022 é o primeiro a incluir a população quilombola. Pela primeira vez, recenseadores irão percorrer localidades e comunidades previamente mapeadas pelo IBGE e pessoas desses territórios poderão se autodeclarar quilombolas, indicando a qual comunidade pertencem.

Rejane Maria de Oliveira, 47, liderança quilombola no quilombo Maria Joaquina, que fica em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro. Pela primeira vez a população quilombola será contada no Censo - Eduardo Anizelli/ Folhapress - Eduardo Anizelli/ Folhapress
Rejane Maria de Oliveira, 47, liderança quilombola no quilombo Maria Joaquina, que fica em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro. Pela primeira vez a população quilombola será contada no Censo
Imagem: Eduardo Anizelli/ Folhapress

"A inclusão dos quilombolas como alvo do Censo é um marco histórico", disse a Ecoa Antonio Crioulo da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos). "Desde 2008 a Conaq vem tensionando politicamente para garantir que isso aconteça. Não tivemos sucesso em 2010, mas continuamos os diálogos e as questões lá colocadas [no Censo 2022] foram pactuadas com a participação ativa de representações do movimento quilombola".

Segundo Crioulo, um dos pontos defendidos pelo movimento foi recensear todas as comunidades autoidentificadas como quilombolas, independente da titulação. Apenas 162 das 3.477 comunidades quilombolas já reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares detêm a titularidade das terras, o equivalente a quase 5%.

"A demora em reconhecer os quilombolas como parte desse país é fruto do racismo estrutural, do processo de embranquecimento na construção do Brasil, que foi pensado para que não tivéssemos direitos", disse o líder quilombola.

Articulação do movimento indígena para estimular autodeclaração

Às vésperas do Censo 2022, o movimento indígena buscou articular uma mobilização nacional para estimular a autodeclaração de indígenas que se identificaram como pardos em levantamentos anteriores.

IBGE realiza o Dia de Mobilização do Censo Indígena  - Divulgação/Acervo IBGE - Divulgação/Acervo IBGE
IBGE realiza o Dia de Mobilização do Censo Indígena
Imagem: Divulgação/Acervo IBGE

Lideranças veem essa identificação "errada" como uma tentativa de fugir do preconceito e afirmam que ela acaba levando a um número subestimado de população indígena, o que enfraquece seus direitos.

"O paradigma da miscigenação acabou fragilizando muito a presença indígena no Brasil. Isso foi uma tática do projeto de colonização. Acreditamos que a consciência da identidade indígena está mais sólida no Brasil, sobretudo pelos esforços do próprio movimento indígena", disse a Ecoa Weibe Tapeba, liderança do povo Tapeba de Caucaia (CE) e coordenador da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará.

Para a coordenadora do Censo de povos e comunidades tradicionais do IBGE Marta Antunes, a autodeclaração de indígenas como pardos foi um "ensinamento histórico" fomentado pelo próprio Estado, incluindo o Censo que só passou a ter a categoria indígena como opção para a pergunta sobre cor ou raça em 1991.

Antunes também lembra que, até a Constituição de 1988, os povos indígenas eram tutelados pela Funai (Fundação Nacional do Índio). "Em 1991, muita gente ainda tinha receio de se declarar indígena e ser encarado como um cidadão de outra classe", afirmou.

Buscando corrigir esse problema, o Censo passou a aplicar em 2010 a pergunta "você se considera indígena?" para quem mora em terras indígenas, independente da cor ou raça autodeclarada. Com isso, o índice de autodeclaração indígena cresceu 15%. Em 2022, a pergunta também será feita em áreas urbanas com um número significativo de indígenas.

Quais políticas para essas populações são criadas a partir do Censo?

Segundo a coordenadora do IBGE Marta Antunes, os dados do Censo sobre a população indígena possibilitaram a formulação de políticas educativas, de revitalização e ensino de línguas indígenas e a elaboração de materiais didáticos específicos para as escolas indígenas.

Também foram organizados mutirões de cidadania para que os indígenas pudessem emitir documentos como o Rani (Registro administrativo de nascimento indígena).

Dados do Censo sobre a população indígena possibilitaram a formulação de políticas públicas para as comunidades - Tânia Rêgo/Agência Brasil - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Dados do Censo sobre a população indígena possibilitaram a formulação de políticas públicas para as comunidades
Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

"Em 2010, a gente viu que tinha uma quantidade imensa de pessoas indígenas sem documentação. Muitas vezes o custo de descer o rio para ir num cartório registrar a criança é tão alto que acaba não valendo a pena", explicou a servidora.

Em 2022, uma das expectativas é que os dados reflitam de maneira inédita mudanças na demografia indígena provocadas pela política de saúde indígena, implementada pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), criada em 2010.

"A Política de Atenção à Saúde Indígena foi construída a partir de uma mobilização nacional dos povos indígenas. Ela está minimamente regulamentada, mas infelizmente as ações de saúde têm se fragilizado nos últimos anos a partir da limitação de orçamento. Essa avaliação será fundamental para que as ações de saúde sejam efetivamente fomentadas", disse Weibe Tapeba.

"O censo deve contribuir inclusive para apontar dados da população indígena em contexto urbano, o que deve reforçar o debate por políticas específicas de assistência a esses parentes".

Para os quilombolas, as políticas de saúde ainda deixam a desejar. Durante a pandemia de covid-19, mesmo sendo declarados um dos grupos prioritários para a vacinação, as comunidades enfrentaram dificuldades para se vacinar.

"Infelizmente a política não foi efetivada de forma eficaz porque [o Estado] não tinha os dados de onde estão as comunidades e quantos são os quilombolas", observou Antonio Crioulo. "No nosso entendimento, a inclusão dos quilombolas nessa contabilização do Censo servirá para garantir a viabilidade de políticas públicas não só na área de saúde quanto na área da educação, assistência social, soberania alimentar e de apoio à agricultura quilombola".

Censo de 2022 conta com o trabalho de 180 mil recenseadores - Tânia Rego/Agência Brasil - Tânia Rego/Agência Brasil
Censo de 2022 conta com o trabalho de 180 mil recenseadores
Imagem: Tânia Rego/Agência Brasil

Como o Censo está atuando nas aldeias e comunidades?

O Censo 2022 tem um procedimento específico para as áreas indígenas e quilombolas: ao chegar, os recenseadores procuram as lideranças, se apresentam, assim como ao IBGE e ao Censo, explicam como o trabalho é feito e fazem uma reunião para tirar dúvidas. As lideranças podem indicar um guia comunitário para apoiar o recenseador. Além disso, quem vai para essas áreas tem um dia extra de treinamento e, de acordo com o IBGE, há mais indígenas e quilombolas atuando como recenseadores e supervisores este ano.

"É uma etapa informativa. Não tem mais como mudar nada na metodologia, mas tem como explicar e tirar todas as dúvidas da liderança, da população, do professor, do agente de saúde, de quem acharem importante estar nessa reunião", disse Marta Antunes.

Desde 2018, associações indígenas e quilombolas participaram de consultas nacionais do IBGE para a realização do Censo.

 Moradores do quilombo Maria Joaquina, que fica em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, durante evento de lançamento do Censo 2022 - Eduardo Anizelli/ Folhapress - Eduardo Anizelli/ Folhapress
Moradores do quilombo Maria Joaquina, que fica em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, durante evento de lançamento do Censo 2022
Imagem: Eduardo Anizelli/ Folhapress

"Pudemos dar a nossa contribuição no aperfeiçoamento da proposta de formulário específico para os povos indígenas e estamos atuando na articulação com as lideranças e organizações indígenas para sensibilizar e mobilizar as comunidades nesse estágio de recenseamento", disse Weibe Tapeba.

Segundo Marta Antunes, essa sensibilização faz toda diferença: "Quando a liderança fala que os parentes podem receber a gente, o trabalho flui muito mais rápido, as pessoas se sentem confiantes inclusive para se declarar em relação ao seu pertencimento étnico".