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Após ser resgatada, lobinha-guará órfã se prepara para ser livre no Cerrado

A loba-guará Pequi - Marcella Lasneaux
A loba-guará Pequi Imagem: Marcella Lasneaux

Paula Rodrigues

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

23/02/2022 06h00

Desde o final do último mês, a zootecnista Ana Raquel Gomes Faria vem acompanhando um "BBB paralelo". "Eu não faço outra coisa da vida! Começo a escrever minha tese de doutorado e quando vejo já estou de volta dando uma espiadinha", brinca, mantendo os olhos fixados na tela do computador.

Um sorrisão aparece no rosto quando ela encontra pela câmera a única participante desse reality show: Pequi, uma loba-guará com orelhas grandes apontadas para cima, pelagem meio alaranjada, patinhas pretas e pernas compridas que a deixam alta - ou melhor, "elegante", como descreve Ana Raquel.

Quem vê agora, nem imagina que essa é a mesma lobinha encontrada desnutrida e desidratada, resultado dos dias que passou sem se alimentar quando tinha menos de um mês de vida.

Pequi - Marcella Lasneaux - Marcella Lasneaux
Lobinha Pequi foi resgatada em 2020 com mais cinco irmãos após a mãe, Caliandra, ser encontrada morta
Imagem: Marcella Lasneaux

Mangaba, Araticum, Seriguela, Baru e Pequi

Era junho de 2020, e uma equipe da Onçafari, associação que trabalha com conservação do meio ambiente, monitorava uma loba-guará ao redor da Fazenda do Trijunção, na Bahia. De tempos em tempos, a Caliandra, como ficou conhecida, construía uma nova toca em diferentes lugares para os cinco filhotes que teve. Uma forma de proteção para a ninhada, explica Ana Raquel.

Até que um dia Calindra sumiu. As buscas por ela duraram dois dias e, quando a encontraram, estava morta a cerca de 10 km de distância de onde tinha deixado os bebês — que foram amparados pelo Onçafari e enviados ao Zoológico de Brasília com ajuda do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

Por meio de votação no Instagram, os lobinhos órfãos receberam os nomes de Mangaba, Araticum, Seriguela, Baru e, claro, Pequi.

Pequi - Ivan Mattos/Zoológico de Brasília - Ivan Mattos/Zoológico de Brasília
Os filhotes de lobo-guará Mangaba, Araticum, Seriguela, Baru e Pequi
Imagem: Ivan Mattos/Zoológico de Brasília

Foi então que uma força-tarefa entrou em cena: outros projetos que trabalham com conservação da fauna brasileira se interessaram pela história e se ofereceram para acolher os pequenos. Dois deles ficaram no Onçafari, outros dois com o Parque Vida Cerrado e Ana Raquel, junto à ONG Jaguaracambé, ficou responsável pela Pequi.

"As pessoas ficam com pena deles porque foram separados. Só que o lobo-guará é uma espécie muito solitária. Eles não convivem bem, começam a competir entre eles, um acaba se sobressaindo ao outro, um come mais e o outro acaba ficando mais fraco... Pequi não tem nada de agressividade, mas ela não aceita mais outros lobos, então não precisa ficar com pena", explica a zootecnista.

Lobeira é bom, goiaba nem tanto

Pequi - Marcella Lasneaux - Marcella Lasneaux
Imagem: Marcella Lasneaux
Sem Caliandra para ajudar os filhos a se alimentar, ensinar a caçar e prover os cuidados necessários, Pequi (assim como os irmãos) precisou passar por um processo de adaptação para aprender tudo que é necessário para um lobo-guará conseguir viver livre.

Alimentos encontrados no Cerrado foram introduzidos aos poucos na dieta para que ela fosse se acostumando com a comida que vai precisar caçar no futuro. Mas com algumas ressalvas, porque a Pequi é exigente.

"A pequena é extremamente comilona! Mas não gosta de goiaba de jeito nenhum. A gente coloca para ela e ela não come. Também só come araticum se não tiver gelado (risos). Mas adora a lobeira [pequena árvore da região], que é a principal fonte de alimento desses animais e também atua como um vermífugo para eles, então já estamos felizes", conta Ana Raquel.

Nova etapa até conquistar a liberdade

Com o passar do tempo, a lobinha que era a menor da ninhada se tornou a maior. Cresceu e passou a necessitar de um espaço correspondente ao seu tamanho para poder viver sossegada enquanto não está preparada para ser livre pelo Cerrado.

No começo de fevereiro deste ano, ela finalmente foi para um recinto de reabilitação grande, com 2.750 m², no Paraíso da Terra, em Brasília. Só conseguiu a transferência graças à ajuda de muitos desconhecidos que se comoveram com a história da lobinha órfã nas redes sociais.

Uma vaquinha foi aberta para custear as obras necessárias para receber a Pequi e até uma loja de joias, a Zilah Joias & Sutilezas, doou parte do lucro arrecadado em janeiro para comprar uma caixa utilizada no transporte dela até o espaço.

Pequi está lá há pouco mais de quinze dias, e a estimativa é que fique por mais dez meses até estar pronta para ser solta na natureza. Mas, para isso acontecer, será necessário que a lobinha realmente esteja preparada para se virar sozinha no mato. Por isso, os próximos passos são cruciais. Caso não haja uma resposta positiva na reabilitação, o tempo pode se estender.

"Agora teremos três etapas de três meses. Primeiro começamos a retirar a ração de cachorro que ela come, aumentando os frutos nativos e introduzindo as presas abatidas que fazem parte da alimentação do lobo-guará. Depois iniciamos com as presas vivas para entender o comportamento dela de caça", diz a zootecnista.

Apesar do apego com a lobinha, Ana Raquel explica que outra parte importante é o distanciamento dos humanos com a Pequi. Se antes ela precisava de ajuda dos voluntários para conseguir sobreviver, agora é necessário que todos se afastem dela para que a Pequi possa aprender a se virar sozinha no futuro.

O monitoramento da pequena agora é feito apenas com uma câmera instalada no local, que a zootecnista acompanha sempre que pode, entusiasmada e comemorando cada passo que a lobinha dá e a deixa mais perto da liberdade.

"A Pequi não dorme mais na casa que construímos para ela, então achamos que ela já fez a própria toca no mato. A gente foi até o recinto algumas vezes e ela não apareceu. Então, isso tudo é ótimo!"

Pequi - Filipe Martins Neves - Filipe Martins Neves
Hoje com um ano e meio, Pequi está em um recinto onde se prepara para viver solta no Cerrado
Imagem: Filipe Martins Neves

Pequi, a embaixadora

Toda essa movimentação não é importante só para a Pequi conquistar a liberdade. Ela se transformou em uma espécia de embaixadora. Cada processo para a soltura da lobinha é importante para a espécie como um todo, já que até hoje não existe qualquer protocolo oficial de soltura do lobo-guará.

"Estamos compilando todas essas informações que adquirimos com a Pequi e os irmãos dela para criar esse protocolo que possam servir para os próximos, para que tenhamos um roteiro do que fazer quando outros lobos-guarás precisarem", diz Ana Raquel.

Protagonista da nota de R$ 200, esse animal é também importante para o Cerrado brasileiro. Ana Raquel explica que o lobo-guará é uma espécie guarda-chuva, isso significa que a conservação da vida desse animal garante a de outros. Além de assegurar a dispersão de sementes da lobeira, e assim a manutenção da biodiversidade do bioma.

A gente precisa parar de ver esse lobinho como um ladrão de galinha e começar a olhar para ele como um importante aliado na conservação do Cerrado.

Ana Raquel Gomes Faria, zootecnista

Ajude a Pequi a ser livre:
https://www.vakinha.com.br/vaquinha/ajude-a-pequi-a-ser-livre