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Após liderar luta no passado, idosos LGBTQIA+ estão em busca de acolhimento

Antes da pandemia, Eternamente Sou promovia encontros, cursos, oficinas e palestras para o público LGBTQIA+ com mais de 50 anos - Arquivo Pessoal
Antes da pandemia, Eternamente Sou promovia encontros, cursos, oficinas e palestras para o público LGBTQIA+ com mais de 50 anos Imagem: Arquivo Pessoal

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

16/06/2021 06h00

Ele tinha se programado para ficar apenas três minutos em cada ligação. A lista grande de números para ligar não permitiria demorar muito na conversa com um ou com outro. Mas Otto Santo nunca conseguiu manter seu próprio plano. Primeiro porque ele é daqueles que gosta de falar e parece ficar ainda mais feliz ouvindo o que os outros têm para compartilhar. Segundo porque, em um desses telefonemas, ouviu algo que o quebrou por dentro. "Me falaram bem assim: 'Faz um ano e meio que esse meu celular não toca'", conta. Aqueles três minutos se transformaram, então, em algumas horas de conversa.

Otto tem se acostumado a ouvir esses relatos ao telefone desde que a pandemia chegou no Brasil. Em abril de 2020, quando se juntou a um amigo para fazer essas ligações, ele já estava preocupado com a solidão que muitas pessoas poderiam estar vivendo naquele momento — assim como ele estava.

Enquanto pegava o telefone para discar para alguém, o paulistano guardava no peito o luto por ter perdido Mauro, seu amor, com quem foi casado por 33 anos e que morreu no final de 2018. Desde então, tentava lidar com a vida sozinho, ao mesmo passo que ganhava ganhava consciência de como o tempo tinha passado rápido sem perceber. "Eu achava que tinha 30 anos ainda! O Mauro era 14 anos mais velho que eu, então fiquei nesses últimos anos focado na velhice dele, vivendo a velhice dele. Assim esqueci da minha", diz Otto, hoje com 60.

Foi essa vontade de entender melhor o próprio envelhecer que o fez se interessar pela Eternamente Sou, uma associação sem fins lucrativos que nasceu em São Paulo (SP), em 2017, para acolher e apoiar pessoas LGBTQIA+ com mais de 50 anos. Ou, como explica o vice-presidente Luis Otavio Baron, 60, "é para tentar garantir uma velhice boa para essa comunidade de lésbicas, bissexuais, gays, transsexuais, travestis."

As ligações feitas por Otto foram justamente para essas pessoas, os Eternos, como são conhecidos os assistidos pela ONG. Mas ele não é o único. Desde o início da pandemia, vários desses Eternos aderiram à moda de usar os computadores e celulares para poder compartilhar momentos, conhecimentos e fofocas. Já criaram essas salas para falar e fazer de tudo um pouco: aula de inglês, conversas sobre viagens, uma ceia de Natal juntos e até uma audionovela sobre um prédio só de idosos que se passa em 2030.

Dupla invisibilidade

Apesar de aos 30 estar longe dos 60 anos, idade que uma pessoa precisa ter para ser considerada idosa, segundo o Estatuto do Idoso, Rogério Pedro foi quem criou a Eternamente Sou.

"Meus avós sempre estiveram presentes em minha mente, né? E uma vez que eu me espelhava neles, eu também tentava me enxergar no futuro e me deparava muito com essa questão de como seria ser um gay idoso. Como seria isso para a sociedade, para o movimento? Porque ninguém falava e ninguém sabia onde estavam os idosos LGBTQIA+, não surgiam em questões de políticas públicas. Nada, né?", diz.

É fácil encontrar falas parecidas com a de Rogério. Conversando com os assistidos da Eternamente Sou para essa reportagem, todos responderam que a principal motivação que os levou até a associação foi a falta de iniciativas que olhassem com mais atenção para esse público em específico.

Para Milton Crenitte, que é médico geriatra do Hospital das Clínicas, em São Paulo (SP) e voluntário da associação, um dos grandes problemas dessa dupla invisibilidade é a dificuldade que pessoas LGBTQIA+ com mais de 60 anos têm de conseguir ajuda. Pela falta de estudos e dados sobre essa população, ele começou a pesquisar mais sobre o assunto na área da saúde. Analisando 7 mil respostas de idosos por todo o Brasil, ele chegou à conclusão de que, entre essas pessoas que responderam o questionário, ser LGBTQIA+ é um fator de risco. "Não estamos falando só sobre conseguir entrar em uma UBS, tem que em tudo: tem transporte para essa pessoa chegar até o atendimento? Ela tem dinheiro para a passagem? Essa pessoa vai ser bem recebida? Vai poder usar o banheiro com tranquilidade?", diz.

E se você colocar marcadores como cor da pele, gênero, se a pessoa for uma travesti preta, por exemplo, a situação piora muito. E existe dificuldade no acesso a um atendimento de saúde de qualidade por alguns motivos, como a presunção inicial ser que aquele paciente é hétero ou cisgênero, e até mesmo a desistência da pessoa em procurar ajuda por medo de sofrer algum tipo de preconceito
Milton Crenitte, geriatra

Eternamente Sou - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Criada em São Paulo (SP) por Rogério Pedro (à esquerda), Eternamente Sou oferece assistência médica, psicológica e jurídica a população LGBTQIA+ idosa
Imagem: Arquivo Pessoal

Tirando a velhice LGBTQIA+ do armário

Para tentar ocupar o vazio de serviços ou políticas públicas para essa população, a associação se apoia em uma base com cerca de 5 mil profissionais voluntários, como assistentes sociais, médicos, psicólogos e advogados que atendem os mais de 1.500 assistidos espalhados pela capital paulista, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina. Foram alguns desses profissionais que assumiram o trabalho voluntário iniciado por Otto de ligar para as pessoas da ONG durante a pandemia. A ação acabou virando um programa da Eternamente Sou, com protocolos a serem seguidos e assistência psicológica por telefone.

Mas o trabalho que a associação realiza é muito diverso e até certo ponto bem misturado, sendo comum encontrar assistidos que acabaram virando voluntários, como o próprio Otto e a Sueli de Sousa, 62, que entrou no primeiro ano da ONG, em 2017, quando buscava por alguma iniciativa como a Eternamente Sou, e não quis sair mais por causa dos novos amigos que encontrou por lá.

"Achei muito legal porque vi pessoas com histórias de vida muito parecidas com a minha. Sabe, eu sou de uma geração que não se expunha muito", Sueli começa a contar. "A gente viveu nossa juventude durante a ditadura, imagina! E ainda sou da geração HIV, né? Muitos amigos meus morreram naquela época." Na associação, Sueli acabou ganhando um programa culinário, chamado Cozinha de Verdade, em que toda semana ensina uma receita nova para os assistidos.

"Tenho um lema: quem é mais velho é quem tem que ter juízo! A gente que já viveu mais, tem que exercer nossa sabedoria e conversar mais com as gerações mais novas, aprender com eles também. Eu acreditei por um tempo que a responsabilidade de cobrar uma vida mais digna, com políticas públicas principalmente, era mais deles, mas vi que tem que ser compartilhada", afirma.

Futuras velhices

Em um futuro próximo, a população brasileira será mais idosa do que jovem, de acordo com as projeções do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2060. E apesar de não existir um dado que mostre quantos são os idosos LGBTQIA+ no Brasil, a Eternamente Sou tem se esforçado para construir uma aposentadoria mais saudável e acolhedora para essas pessoas.

"A gente sente a necessidade muito grande de falar sobre políticas públicas agora", diz Rogério. Ele explica que são as demandas dos próprios idosos que moldam as ações da ONG. Entre os relatos que recebem, há histórias de gente que, sem acolhimento familiar ou de amigos, precisa fingir que é heterossexual ou cisgênero para conseguir uma vaga em casas de acolhimento para a população idosa em geral.

"Para mim, isso tudo significa pensar no futuro. Hoje a gente está pavimentando as estradas para que elas sejam mais confortáveis para os gays, as lésbicas, as trans que são jovens hoje e vão envelhecer no futuro. Tem um trabalho muito longo pela frente, mas eu estou esperançosa, tem muita gente boa fazendo coisas por aí", afirma Maria Tereza Tauile — ou Tete, como ela prefere ser chamada — de 68 anos, também assistida e professora de português voluntária da associação.

Por isso, a conquista da primeira sede da Eternamente Sou no centro de São Paulo (SP) é comemorada. O espaço já nasceu pioneiro: é o primeiro centro de convivência voltado para o público idoso LGBTQIA+. Mas ainda não foi inaugurado por causa da pandemia.