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Escritor narra o amor na periferia em tempos de coronavírus

O escritor Sacolinha - Divulgação
O escritor Sacolinha Imagem: Divulgação

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

15/07/2020 16h54

"O coração humano produz energia suficiente para mover um caminhão por cerca de 32 quilômetros". Assim, cavando espaço para o sonho entre lições de ciências, tem início a saga de Bibiano no conto "Entre Amar e Morrer, eu Escolho Sofrer", que o escritor Sacolinha lança nesta semana pela editora Todavia. O músculo capaz de movimentar, ao longo da vida, o equivalente a 435 toneladas de sangue, nos conduz pelo universo sensível do protagonista, em uma história de amor e solidariedade em tempos de coronavírus.

Não é por acaso que a personagem Malú, formada em história, militante negra e ativista social, que acaba se tornando líder da Brigada de Saúde e Integridade Física e Mental da comunidade onde mora durante a pandemia, guarda semelhanças com o artista de 36 anos e morador do bairro Jardim Revista, em Suzano (SP).

Formado em Letras pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Ademiro Alves de Sousa tem diversos livros lançados e é autor do projeto criado em 2017 Literatura e Paisagismo - Revitalizando a Quebrada, em que junta arte, texto e o plantio de árvores em áreas degradadas. Muitos desses pontos acabam virando cenário de selfies que a molecada posta nas redes sociais, ajudando a propagar uma imagem mais positiva da quebrada.

"Acredito que o intelectual de periferia tem de arregaçar as mangas e fazer. Essa é a diferença de um intelectual que mora na periferia. Ele tem que ir lá e mudar a sua vida e mudar a vida das pessoas que estão ali também", diz o escritor, que participa de uma live de lançamento da obra nesta quinta (16), às 18h30, com participação de Bruninho Souza e Ryane Leão.

Leia trechos da entrevista com Sacolinha a seguir.

Seu conto é muito importante no sentido de trazer o ponto de vista da favela para a literatura. Como foi o processo de criação do texto? Você já estava pensando em escrever sobre a pandemia?

Todos os dias eu subia na minha laje para o meu banho de sol por volta das 9h30 e ficava observando a periferia à minha frente e tentava entender o que estava acontecendo, porque todo dia a gente recebia uma notícia nova a respeito do coronavírus. Foi aí que surgiu o convite da editora Todavia para pensar em algum texto relacionado à periferia e como ela estava enfrentando a quarentena. Eu sou uma pessoa que adora escrever ficção, adoro ficar em volta de uma fogueira ouvindo histórias. Falei que queria fazer uma ficção relacionada à solidariedade. Porque a periferia só vai passar pela pandemia graças à solidariedade, às vezes, daquela pessoa que só tem um prato de comida e divide o que tem. Foi aí que surgiu a ideia de "Entre Amar e Morrer eu Escolho Sofrer". Não sou muito fã de violência. A periferia não é só isso, mas infelizmente, nas novelas, nos filmes e nos livros sobre periferia o que dá ibope é tiro, porrada e bomba.

Então resolvi, além da solidariedade, contar também uma história de amor. Durante 30 dias me dediquei ao rascunho e à escrita do conto

A história toca em questões muito atuais, assuntos quentes, que fazem parte do noticiário, como a própria covid, mas também outros pontos, como o saneamento, por exemplo. Como esses temas se encaixam na sua obra?

Minha família veio de uma cidade no fundão do Vale do Jequitinhonha (MG), quase chegando na Bahia. O nome da cidade é Berilo. É irônico, porque de Berilo agora só tem o nome, todas as pedras preciosas com esse nome foram surrupiadas em outros tempos. Meu último familiar saiu de lá no final da década de 80. Somente no ano de 2018 a água chegou a essa comunidade chamada Vila de Santo Isidoro. Antes eles consumiam a água da chuva da cisterna e a água que compravam de caminhão pipa. Existem vários Brasis e um deles fica lá em Berilo.

Falando de saneamento, quantas cidades como Berilo existem no Brasil sem saneamento básico, sem água para tomar banho ou até para lavar as mãos com água e sabão? Nessas comunidades desde antes da pandemia eles não conseguem manter o distanciamento e evitar aglomeração, essas pessoas muitas vezes moram em casas com no máximo dois cômodos e 10 pessoas lá dentro, três ou quatro dividindo a mesma cama. São assuntos todos urgentes e gosto de tratar desses temas como uma forma de denúncia. A maioria dos meus textos literários fala disso.

Capa do livro Entre Amar e Morrer, eu Escolho Sofrer - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Muito tem sido falado sobre produtividade na pandemia: a importância de dar valor ao "fazer nada", ao ócio criativo. Mas isso também pode ser muito excludente, já que uma parcela enorme da população não teve a opção de parar. Como você enxerga isso?

Todas as pessoas tiveram a opção de parar, mas você não vai ter dinheiro para pagar o aluguel, a luz, a água e nem para comprar o sabonete para lavar a mão. É isso que sobra para essas pessoas. Um dos vídeos que eu estava vendo sobre ficar em casa dizia "olha, você pode fazer ioga, você pode fazer meditação". Mesmo antes do coronavírus essas pessoas não tinham a possibilidade de fazer ioga ou meditação. Eu faço meditação, mas acredito que milhares de pessoas não têm cabeça para fazer porque um dos pré-requisitos para conseguir meditar é contar até dez sem pensar em mais nada, só se concentrar na sua respiração. Milhares de pessoas não conseguem chegar até o cinco sem pensar na conta de água, de luz, sem pensar se vai perder o emprego ou não

É muito fácil do local onde eu estou, como escritor que tem a possibilidade de ficar em casa porque fiz uma reserva de emergência ou porque recebo direitos autorais. Para mim é muito fácil querer ensinar as pessoas como ficar em casa, como passar o tempo. Mas como eu conheço esses vários Brasis que eu citei aqui, prefiro escrever sobre essas pessoas que muitas vezes não têm voz ou que estão ocupadas demais para ter voz, escrever e fazer esse tipo de denúncia.

Uma passagem marcante do conto é quando Malú e Bibiano estão conversando e ela cita Karnal: "Tão importante quanto atravessar o deserto é saber o que fará depois dele". O que você acha que vai mudar após a pandemia?

Apesar de ter muita esperança nas pessoas, na humanidade, porque senão eu não estava vivo, eu não seria um escritor, um militante, um intelectual de periferia, eu acredito que pouca coisa vá mudar. Bem pouca coisa. Poucas pessoas irão mudar. Até porque essa pandemia não é algo que vem durando dois, três anos, ela tem três, quatro meses, e as pessoas estão voltando para a rua, estão deixando de usar máscara, estão voltando a comprar roupa, estão voltando a ir ao mercado com a família inteira, só falta levar o cachorro para pegar coronavírus.

Diante desse cenário, eu me pergunto: o que eu acho que vai mudar? As pessoas que no livro estão sendo solidárias serão solidárias com ou sem pandemia. As pessoas que estão indiferentes continuarão sendo indiferentes antes, durante e depois da pandemia. Infelizmente isso parece ser uma coisa de berço, que elas foram educadas em suas famílias a serem individualistas. Têm a sua Netflix, têm o seu app para pedir comida, abrem uma cerveja, maratonam as suas séries e não estão nem aí com outras pessoas. Porque isso faz parte do seu comodismo.

Chama atenção o fato de o protagonista ser um homem tão sensível. Tem algum componente autobiográfico no seu conto?

A maioria dos meus textos literários sempre tem uma opinião minha, apesar de ser ficção, uma ideia minha disfarçada de fala na boca de um personagem. Sempre tem alguma qualidade ou algum defeito meu em algum personagem, porque às vezes a gente quer exteriorizar, então eu coloco isso para fora jogando em cima dos meus personagens. Então, sim, tanto Bibiano quanto Malú têm componentes autobiográficos.