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Como a formação da cidade dificulta a quarentena nos extremos de SP

A comunicadora Luana Nunes mora em Barragem, extremo sul de São Paulo - Arquivo Pessoal
A comunicadora Luana Nunes mora em Barragem, extremo sul de São Paulo Imagem: Arquivo Pessoal

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

05/05/2020 04h00

O isolamento social recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) durante a pandemia de Covid-19 ainda é uma realidade difícil de ser cumprida à risca por Luana Nunes, 25. A comunicadora e sua família residem em Barragem, bairro do extremo sul da capital paulista. Farmácias, grandes mercados e entregas por aplicativos não existem no local. Antes do coronavírus, o planejamento urbano já isolou boa parte da população dos serviços da cidade.

"As vendinhas daqui têm poucos produtos e, se precisamos fazer uma compra maior, elas não são suficientes e temos de ir até Parelheiros. São 30 minutos de ônibus", diz.

O pai de Luana que trabalha como agente de limpeza municipal não pôde parar. Da família de três pessoas, ele é o único que tem saído todos os dias. Ela consegue trabalhar de casa, mas a internet via rádio tem oscilado bastante, e a baixa cobertura de sinal móvel na região torna o seu acesso ainda mais difícil.

"Pode parecer bobo, mas para a gente não é. Se não tem internet, não tem nada aqui. Para você usar o sinal do celular você tem que andar pelo bairro, subir os morros. Aqui não entrega nada, não é uma região que tem serviços de aplicativos de transporte ou comida. Essas coisas deixam o isolamento muito mais difícil. Me sinto sufocada em casa, e muita gente do bairro não tem respeitado o isolamento, fazem festas, fumam narguilés", lamenta.

A situação de Luana é semelhante a de outras pessoas espalhadas pelas periferias da cidade que tentam se isolar na pandemia. A dificuldade de acesso aos variados comércios e serviços básicos prejudica uma parcela da população que não consegue seguir à risca as recomendações da quarentena — mesmo quando pode trabalhar de casa.

Em São Paulo, maior e mais rica metrópole do país, é justamente nas bordas do mapa que a Covid-19 tem mostrado sua face mais letal. Todos os distritos com mais de 50 mortes suspeitas ou confirmadas pelo vírus estão nas periferias. Brasilândia (zona norte) tem 103 mortes; Capela do Socorro (zona sul), 65; Sapopemba, 72; e Cidade Tiradentes (zona leste), 62. Levantamento da Secretaria da Saúde aponta que as mortes avançam principalmente por regiões onde há favelas, cortiços e núcleos habitacionais.

Deslocamento diário de quatro horas

A preocupação da operadora de telemarketing Ibenê de Souza Dias Alves, 49, aumentou muito após a morte de uma amiga por Covid-19. Moradora do bairro Cohab Juscelino Kubitschek, em Guaianazes, ela percorre mais de quatro horas, somando ida e volta, para trabalhar na Lapa, zona oeste da cidade.

"Tem momentos em que meus sentimentos ficam confusos. Penso se não seria melhor desistir para ficar em casa. Mas e as contas? As dívidas?", diz Ibenê, que mora com o marido que tem 75 anos e é hipertenso.

A operadora de telemarketing Ibenê de Souza Dias Alves e o marido; moradora de Guaianazes, ela tem de ir trabalhar na Lapa diariamente - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A operadora de telemarketing Ibenê Alves com o marido; eles moram em Guaianazes e ela se desloca diariamente mais de quatro horas para trabalhar na Lapa, zona oeste, mesmo durante pandemia
Imagem: Arquivo Pessoal
Sem computador pessoal, trabalhar de casa não é uma alternativa para ela. "A empresa em que eu trabalho ofereceu home office para quem tem internet e computador, mas não se posicionou sobre o que aconteceria com quem não tem. Além do medo de ser contagiado há o medo do desemprego. Até o momento continuo saindo todos os dias para trabalhar", conta.

Distanciar-se do emprego também não foi uma opção para a agente de limpeza Karla Nicomeds, 20, moradora da Comunidade Maravilha 2, no bairro de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. "Dá medo, né? Perto de onde eu moro quatro pessoas pegaram, aí a gente fica com um pouco de receio", diz ela. Nicomeds é líder na ocupação em que reside, ajudando a distribuir as doações que chegam ao local.

A baixa proporção de trabalho por habitantes é o que faz com que muitos moradores dos extremos busquem vagas em áreas centrais. Segundo o Mapa da Desigualdade 2019, todos os 18 distritos com menos de uma vaga de emprego formal a cada dez moradores estão na periferia. Cidade Tiradentes é o que tem a menor proporção: 0,24.

Kelly Alencar Teixeira integra o projeto Urbanismo contra o Coronavírus - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Kelly Alencar Teixeira integra o projeto Urbanismo contra o Coronavírus
Imagem: Arquivo Pessoal
"Grande parte dos moradores das periferias de São Paulo são trabalhadores informais, ou não podem realizar o teletrabalho", resume a arquiteta e urbanista Kelly Alencar Teixeira. "Com isso, precisam continuar se deslocando para trabalhar. A preocupação com o que vão comer é maior do que se vão correr o risco de contrair o vírus."

Kelly faz parte da Urbanismo contra o Corona, rede voluntária que criou um mapa de ações sociais pelo país. "A população pode encontrar mobilizadores e marcar locais que estão arrecadando e distribuindo doações. É possível observar os itens de maior necessidade de cada região. Identificando e comunicando, fortalecemos nossa forma de atuar em urbanismo e fazemos com que o mapa cumpra função social", diz ela.

Isolamento: dimensão econômica e cultural

Tiarajú D'Andrea, professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos) - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Tiarajú D'Andrea, professor do Instituto das Cidades da Unifesp e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos)
Imagem: Arquivo Pessoal
Professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos), Tiarajú D'Andrea reforça a fala da urbanista ao frisar a situação de trabalho de boa parte dos moradores de periferias. "São condições que os obrigam a ganhar no almoço o que será a refeição da janta."

O cientista social aponta ainda que a precariedade das habitações dos brasileiros mais pobres fez com que a rua se tornasse extensão da casa, o que ajuda a explicar a dificuldade em cumprir a quarentena. "É uma questão cultural que se fundamenta em uma questão econômica", diz ele.

Casas com poucos cômodos e falta de água são alguns desafios para quem vive em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo — que não fica em um extremo geográfico, mas convive com situações de falta de serviços e precariedade que dificultam a quarentena. Foi nela que o auxiliar de hospedagem hospitalar Desivan Primo, 33, viveu duas semanas difíceis após ser diagnosticado com Covid-19 em 14 de abril.

"A União dos Moradores se prontificou em nos ajudar, houve entrega de cesta básica, álcool em gel e marmitas para nossa família durante todo o período", conta ele. Por meio de projetos sociais, a quarentena se torna menos penosa para quem não consegue se isolar da forma mais indicada.

A mulher do auxiliar também apresentou sintomas da Covid-19, mas não conseguiu fazer o exame para saber se tinha sido contaminada. Recuperado, ele lamenta que a família não consiga seguir todas as recomendações para evitar o contágio.

A água que para de correr nos canos à noite em Paraisópolis é outra barreira. A arquiteta e urbanista Kelly Alencar Teixeira alerta que o problema é comum nas periferias da capital, segundo o Mapeamento de Redes Colaborativas da ação Urbanismo contra o Corona. "Entre as respostas dos moradores, 45% afirmaram que estão com fluxo reduzido de água, e 4,5% estão sem acesso", diz Kelly.

Além dessas dificuldades, ambulâncias não entram em Paraisópolis — a União dos Moradores se organizou para contratar serviços particulares. São várias as ações desenvolvidas no bairro na pandemia, de agentes comunitários que fazem contato com moradores, os Presidentes da Rua, até a formação de 240 socorristas que se dividem em microrregiões da comunidade com EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) e macas. Há uma semana, duas escolas passaram a receber pessoas contaminadas ou de grupos de maior risco que não têm como se isolar.

No entanto, há preocupação quanto a continuidade das iniciativas. Os projetos são mantidos com doações de pessoas físicas, empresas e financiamento coletivo.

Ações locais ensinam sobre planejamento

Rodrigo Bertamé, presidente do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas no Estado do Rio de Janeiro e um dos idealizadores do projeto Urbanismo contra o Corona, crê que as ações comunitárias que estão ocorrendo especialmente nas periferias podem ajudar a criar modelos de cidade que dialoguem melhor com quem vive os problemas de cada região.

Essas iniciativas nascem de elos de pertencimento das pessoas com o lugar delas. Os caminhos [de mudança] deveriam passar por fomentar as potencialidades do que já existe. Alimentar o ciclo econômico do lugar e com isso estimular novas centralidades. Em vez de investir em um megaprojeto de um bilhão, fazer um bilhão de projetos é um caminho

Rodrigo Bertamé, presidente do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas no Estado do RJ

Fábio Mariano Borges, doutor em ciências sociais pela PUC-SP  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Fábio Mariano Borges, doutor em ciências sociais pela PUC-SP
Imagem: Arquivo Pessoal
Para Fábio Mariano Borges, doutor em ciências sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), um ponto de atenção é que uma cidade como a capital paulista hoje tem várias centralidades, mas isso não indica distribuição igual de infraestrutura.

"São Paulo hoje é plural e com multicentros, mas isso não significa equidade, porque ela foi pensada na perspectiva do consumo, não da política pública. Então nós temos a chegada de shopping centers em pontos da periferia que tornaram seus entornos multicentros, mas isso não foi pensado sob uma gestão pública", explica Fábio. O que quer dizer que, embora exista um centro comercial, por exemplo, uma região pode ter má distribuição de água ou falta de um hospital.

Karoline de Brito mora em Cidade Tiradentes: duas horas para comprar remédios - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A educadora social Karoline de Brito
Imagem: Arquivo Pessoal
A educadora social Karoline Brito, 29, mora em Cidade Tiradentes e, mesmo podendo trabalhar de casa, teve de sair do distrito na quarentena, percorrendo cerca de quatro horas de transporte público para ir até a farmácia. "Faço uso de antidepressivo e tive que ir até a Saúde para comprar o medicamento mais em conta, porque aqui no bairro é até R$ 33 mais caro."

Dificultando o isolamento social, há um isolamento anterior que tem a ver com a limitação de acessos. Cidade Tiradentes tem mais de 211 mil habitantes e, apesar de possuir diversos pequenos comércios, tem apenas dois bancos e dois grandes mercados.

Isabel Barboza da Silva, urbanista que trabalha assessorando mutirões autogeridos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1 em Cidade Tiradentes - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A urbanista Isabel Barboza da Silva
Imagem: Arquivo Pessoal
Isabel Barboza da Silva é urbanista, mora na região e trabalha assessorando mutirões autogeridos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1. Ela explica que essa configuração vem de longe. "Todos esses conjuntos habitacionais foram erguidos em larguíssimas escalas, um igualzinho ao outro, construídos por uma política de habitação que isolava os trabalhadores pobres dos grandes centros de serviços. Esse distanciamento é uma configuração histórica", diz.