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Futuro será confinado e noturno se não aprendermos com 2020, diz cientista

"O ser homem do final do século 22 seria um animal noturno", diz o cientista Carlos Nobre sobre a possibilidade de futuro de temperaturas mais altas - Cesar Manso/AFP
"O ser homem do final do século 22 seria um animal noturno", diz o cientista Carlos Nobre sobre a possibilidade de futuro de temperaturas mais altas Imagem: Cesar Manso/AFP

Rodrigo Bertolotto

De Ecoa, em São Paulo

18/04/2020 04h00

O fatídico ano de 2020 é como um trailer de um futuro projetado pela ciência há décadas, se a humanidade não mudar sua relação com o planeta que habita. O lado bom é que o atual confinamento da população por uma questão médica está servindo de alerta para cenários catastróficos, antes que essa situação seja irreversível, como no processo de aquecimento global.

"Há um aprendizado da pandemia, porque ela mostra como um desequilíbrio no sistema afeta a todos. Há esse paralelo claro entre as duas crises globais. A diferença é que, se o planeta esquentar tanto, não vamos poder abrir a janela e só sairemos ao ar livre durante a noite, principalmente nos trópicos", afirma Carlos Nobre, presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo).

Essa previsão para o século 22 não são fantasias da cabeça de Nobre: elas saíram de um levantamento de 2014 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês). Se o Acordo de Paris, que estipula a redução da emissão de gases do efeito estufa, não for cumprido, o cálculo é que o planeta esquente de 4 a 5 graus Celsius, podendo chegar a infernais 8 ou 12 graus caso aconteçam distúrbios nos sistemas naturais.

O acordo foi assinado em 2015 e, por ironia do destino, entra em vigor agora neste ano, quando sim vai haver uma diminuição das emissões, mas devido à parada obrigatória mundial para conter a velocidade de transmissão do coronavírus.

"A futura mudança climática traz um risco muito maior do que a atual pandemia. Afinal, todo o planeta vai ser atingido, não só o homem. Fora que, se atingirmos um ponto de disrupção do sistema, temos uma situação irreversível. Eu não estou sendo catastrofista. Essa é uma previsão estritamente científica", diz Nobre, maior especialista em clima do país.

Ele aponta que a subida das temperaturas pode detonar processos naturais da Terra que, por sua vez, modificariam totalmente a atmosfera. O calor derreteria primeiro o permafrost (sob os gelos perenes) das regiões pré-árticas da Sibéria e Canadá, onde há muita matéria orgânica congelada, que liberaria gases como o gás carbônico e o metano. Depois, a liquefação das neves do Polo Norte liberaria de suas profundezas mais uma grande dose desses gases, o que mudaria em definitivo o momento como a gente conhece hoje.

"Nesse cenário, a temperatura nos trópicos atingiriam o limite fisiológico do homem e teríamos de viver em ambiente climatizados 24 horas [por dia]. Quase como morar em Marte. Hoje há bunkers projetados pelos superricos dos EUA para o caso de guerra nuclear, com luz artificial para agricultura e grandes filtros de ar, mas essa é uma solução para alguns milhares de pessoas. Não para a população mundial", relata o pesquisador.

Troca de energia

Segundo Nobre, o limite fisiológico humano estaria entre os 35 graus Celsius (com 100% da umidade relativa do ar) e os 40 graus (com 80% de umidade). Sem poder perder o calor metabólico do corpo, bebês e idosos resistiriam por meia hora nesse ambiente, e jovens adultos saudáveis suportariam no máximo duas ou três horas.

"Nessa situação, sair de dia seria só com um escafandro que refrigerasse o corpo. E as únicas horas com condições seriam as da noite. O ser homem do final do século 22 seria um animal noturno", afirma o cientista.

A ciência voltou a ser ouvida agora que uma pandemia obrigou a economia mundial a frear seu ritmo, e a saída da crise está nas orientações de quem conhece o problema. Agora, os líderes políticos, econômicos e religiosos vão precisar dar ouvidos a outros recados dos cientistas.

"Temos que aproveitar essa injeção de dinheiro público na economia para fazer essa conversão. É o momento certo, por exemplo, para eletrificar os transportes, para abandonar o petróleo e o carvão e apostar na energia eólica e solar, de tornar a agricultura e a pecuária mais eficiente e parar de desmatar. Além dos ensinamentos do confinamento, há as lições dessa parada econômica para pensar que mundo que queremos", sentencia Nobre.